“O Diário de Bordo de Marcos Vaz de Lacerda, registo para uso pessoal onde a minúcia alterna com a linguagem telegráfica do aborrecimento e as datas se distanciam sobre longos dias sem menção, chegou-me às mãos cem anos depois, quando a casa do Vale Formoso ficou desabitada pela morte de Carlota. Diário de Bordo estava dentro da escrivaninha que Carlota me legara, uma bela peça italiana que a mulher de Marcos herdara dos avós e devia ter duzentos anos. (…) Carlota interessara-se por mim, contara-me incansavelmente histórias e memórias desse tempo donde eu provinha afinal, desse lado de lá do tempo onde mergulhava a minha própria individualidade, a minha essência, a minha alma. Carlota recordava-se de Marcos numa época em que ele era já um velho senhor tranquilo, as barbas muito brancas, passava horas sentado num cadeirão georgian onde mais ninguém ousava sentar-se, ouvindo Enrico Caruso cantar ópera na enorme grafonola de campânula. Marcos vivia, então, na Penha, numa casa sobranceira ao porto, instalara cadeiras de deck na varanda, estendia-se ao sol olhando os barcos através dos seus potentes binóculos, velho marinheiro na ponte de um navio ancorado, à espera de chegar ao seu último cais.“
"De famílias madeirenses, Helena Marques (Carcavelos 17 de maio de 1935 - 19 de outubro de 2020) foi jornalista durante trinta e seis anos, iniciou a sua carreira no Diário de Notícias do Funchal e terminou-a no Diário de Notícias de Lisboa, onde foi diretora-adjunta (1968-1992). Entretanto, foi redatora de vários outros diários, nomeadamente A Capital, República e A Luta. Publicou o seu primeiro livro, O Último Cais, em 1992. Muito aclamado, recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Revista Ler/Círculo de Leitores, o Prémio Máxima de Revelação, o Prémio Procópio de Literatura e o Prémio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa.
Seguiram-se os romances A Deusa Sentada (1994), Terceiras Pessoas (1998) e Os Íbis Vermelhos da Guiana (2002), e o livro de contos Ilhas Contadas (2007). A sua obra encontra-se traduzida em alemão, italiano, castelhano, grego, romeno e búlgaro. O Bazar Alemão (2010) foi o seu último livro.” (in Wook)
“O Último Cais (BIS, 2009) é um texto envolvente, sedutor, pela sua aparente simplicidade. Pela sua beleza. Pela sua força, tecida de pequenas fragilidades, de pequenas fragâncias de pequenas cintilações musicais.“ – afirmou a escritora Maria Teresa Horta.
“As mulheres detinham um espaço privilegiado nas histórias de Carlota. E as que mereciam esse espaço acabavam sempre mais tarde ou mais cedo, por ser qualificadas de insubmissas. As mulheres obedientes, cordatas, respeitadoras da hierarquia masculina e severas transmissoras da inquestionada observação do seu lugar e das suas limitações, não entravam nas memórias de Carlota. Se eu perguntava pela tia A, pela prima B ou pela avó C, ela limitava-se a uma síntese lacónica e cáustica, inesperadamente grosseira, de letal desprezo:” Era uma porcaria de gente”. Apenas interessavam a Carlota as mulheres de fibra e coragem, só respeitava e recordava as insubmissas, na sua boca tratava-se de uma palavra majestosa que conferia a raras pessoas com a solenidade e o cerimonial com que se impõem as condecorações.“
Helena Marques morre 19 de outubro de 2020, aos 85 anos.
Pedro Sobral, da editora Leya, recorda Helena Marques como uma mulher "Intelectualmente brilhante, afável, extraordinariamente simpática e muito cordial", ouça o testemunho.
A notícia no Jornal Expresso.
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