Cem Melhores Poemas Portugueses dos Últimos Cem Anos (Companhia das Letras, 2017) é uma antologia de poesia organizado por José Mário Silva que esclarece que os cem poemas reunidos “ não serão os melhores de um século, strictu sensu, mas fixam a resposta do antologiador, no momento em que escreve estas palavras à pergunta “Quais são, para si, os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos? A decisão mais difícil, ao definir os critérios desta antologia, prendeu-se com a representatividade. (…) gigantes como como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen ou Herberto Helder teriam de estar muito mais representados do que um poeta jovem com apenas dois ou três livros na bibliografia. (…) A baliza temporal do século implicou a exclusão de poemas publicados pela primeira vez em livro antes de 1917. Fora esse critério, não houve quaisquer preocupações com a cronologia dos textos. (…). A que leitores se destina esta antologia? Idealmente, a todos os leitores. “
“O que é o génio, afinal, ou como é que se distingue O génio, e os bons poemas dos bons poetas? Sei lá se realmente se distingue … O melhor é dormir … Fecho a antologia mais cansado do que o mundo –“
A luz atravessa o quarto entre as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora de um lado seja o poente – onde está o sol, agora – e do outro o nascente – onde o sol já esteve. No quarto juntam-se poente e nascente, e é esta luz que confunde o olhar, que não sabe em que hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha que percorre o espaço entre as duas janelas, como se não tivesse princípio nem fim; e o que faço é puxar essa linha para dentro do quarto, e enrolá-la, como se me pudesse servir dela para atar as duas extremidades do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique parado entre duas janelas, a poente e a nascente, até que o fio se volte a desenrolar, e tudo recomece.
Levanta-se da rocha a flor esmagada Mais dura do que a rocha e cristalina. Raízes, caule, pétalas, angústia. Raízes para sempre ali cravadas, Caule verticalmente inexorável, Pétalas miraculosas: pura água. Minhas mãos são chagas, Para te colher… Minhas mãos são chamas, Pedaços de gelo… Levanta-se da rocha a flor esmagada.
Ana Luísa Amaral | Comuns formas ovais e de alforria: ou outra (quase) carta a minha filha
Foi de repente, eu semi-reflectida por janela oval: uma emoção que me lembrou o dia em que disseste inteiro o nome do lugar onde vivíamos sem lhe trocar as letras de lugar No céu visto daqui, desta janela oval e curta de avião, mais de vinte anos foram por sobre a linha azul daqueles montes e esse recorte puro dos verbos conjugados no presente errado, mas as palavras certas Ainda hoje, não me é fácil falar-te em impiedade, ou nisso a que chamamos mal, e que existe, e emerge tantas vezes da idiotia mais rasa e primitiva Dizer-te unicamente destas coisas neste poema a ti seria como assaltar a própria casa, queimar móveis e livros, matar os animais que como nós a habitam, estuprar a calma que por vezes se instala na varanda Deixo-te só a desordem maior do coração sentida há pouco dessa janela oval, os momentos raríssimos, como só os milagres se diz terem, e que às vezes cintilam: cósmicas cartas de alforria que nos podemos dar, nós, humanos aqui: Só isto eu desejava para ti e nesta quase carta –
Cem Melhores Poemas Portugueses dos Últimos Cem Anos (Companhia das Letras, 2017) é uma antologia de poesia organizado por José Mário Silva que esclarece que os cem poemas reunidos “ não serão os melhores de um século, strictu sensu, mas fixam a resposta do antologiador, no momento em que escreve estas palavras à pergunta “Quais são, para si, os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos? A decisão mais difícil, ao definir os critérios desta antologia, prendeu-se com a representatividade. (…) gigantes como como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen ou Herberto Helder teriam de estar muito mais representados do que um poeta jovem com apenas dois ou três livros na bibliografia. (…) A baliza temporal do século implicou a exclusão de poemas publicados pela primeira vez em livro antes de 1917. Fora esse critério, não houve quaisquer preocupações com a cronologia dos textos. (…). A que leitores se destina esta antologia? Idealmente, a todos os leitores. “
“O que é o génio, afinal, ou como é que se distingue O génio, e os bons poemas dos bons poetas? Sei lá se realmente se distingue … O melhor é dormir … Fecho a antologia mais cansado do que o mundo –“
A luz atravessa o quarto entre as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora de um lado seja o poente – onde está o sol, agora – e do outro o nascente – onde o sol já esteve. No quarto juntam-se poente e nascente, e é esta luz que confunde o olhar, que não sabe em que hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha que percorre o espaço entre as duas janelas, como se não tivesse princípio nem fim; e o que faço é puxar essa linha para dentro do quarto, e enrolá-la, como se me pudesse servir dela para atar as duas extremidades do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique parado entre duas janelas, a poente e a nascente, até que o fio se volte a desenrolar, e tudo recomece.
Levanta-se da rocha a flor esmagada Mais dura do que a rocha e cristalina. Raízes, caule, pétalas, angústia. Raízes para sempre ali cravadas, Caule verticalmente inexorável, Pétalas miraculosas: pura água. Minhas mãos são chagas, Para te colher… Minhas mãos são chamas, Pedaços de gelo… Levanta-se da rocha a flor esmagada.
Ana Luísa Amaral | Comuns formas ovais e de alforria: ou outra (quase) carta a minha filha
Foi de repente, eu semi-reflectida por janela oval: uma emoção que me lembrou o dia em que disseste inteiro o nome do lugar onde vivíamos sem lhe trocar as letras de lugar No céu visto daqui, desta janela oval e curta de avião, mais de vinte anos foram por sobre a linha azul daqueles montes e esse recorte puro dos verbos conjugados no presente errado, mas as palavras certas Ainda hoje, não me é fácil falar-te em impiedade, ou nisso a que chamamos mal, e que existe, e emerge tantas vezes da idiotia mais rasa e primitiva Dizer-te unicamente destas coisas neste poema a ti seria como assaltar a própria casa, queimar móveis e livros, matar os animais que como nós a habitam, estuprar a calma que por vezes se instala na varanda Deixo-te só a desordem maior do coração sentida há pouco dessa janela oval, os momentos raríssimos, como só os milagres se diz terem, e que às vezes cintilam: cósmicas cartas de alforria que nos podemos dar, nós, humanos aqui: Só isto eu desejava para ti e nesta quase carta –