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Literacia Digital para o Mercado de Trabalho: Formação Inclusiva no Ensino Superior
Maria Potes Barbas, Pedro Matos, Cristina Novo, Helena Luís, Nádia Lopes e Mário José

RESUMO

Entender o termo “inclusão” é um desafio da atualidade. A sociedade contemporânea assume uma diversidade de definições de forma a clarificar os vários aspetos que constituem este domínio. Isto, na tentativa de corresponder à globalidade que o conceito de inclusão acarreta. No entanto, aplicar “inclusão” num contexto real e de forma efetiva, especificamente, inclusão social e digital para estudantes com dificuldades intelectuais, é um verdadeiro desafio pois, além de obrigar a uma mudança de paradigma no contexto em que a experiência se insere, acresce um sentido de responsabilidade e de adaptabilidade nas instituições e nos recursos humanos que nelas desempenham a sua profissão. Neste caso, trata-se da criação de um modelo único em Portugal de formação no ensino superior, para capacitar estudantes com dificuldades intelectuais que queiram prosseguir os seus estudos, melhorar as suas competências sociais, profissionais e digitais e, acima de tudo, potenciar em si um conjunto de competências, atitudes e comportamentos essenciais para a sua inclusão social e laboral no mercado de trabalho. Mais se acrescenta que este modelo só é possível com a junção da educação formal e académica à componente não-formal e da educação informal de cada estudante. Queremos com isto dizer que é preciso garantir que este modelo de formação seja totalmente adaptado às necessidades sociais, pedagógicas e emocionais de cada estudante, sendo fundamental situar e compreender a importância de dois agentes envolvidos neste processo: (i) as famílias, que são o ponto de partida para a motivação deste público-alvo e (ii) os voluntários, que são desde stakeholders, técnicos a formadores e outros estudantes.

ABSTRACT

Understanding the term “inclusion” is a challenge today. Contemporary society assumes a diversity of definitions in order to clarify the various aspects that constitute this domain. This, in an attempt to correspond to the globality that the concept of inclusion entails. However, applying “inclusion” in a real context and effectively, specifically, social and digital inclusion for students with intellectual difficulties, is a real challenge, because in addition to forcing a paradigm shift in the context where the experience is inserted, it adds a sense of responsibility and adaptability in the institutions and human resources that perform their profession in them. In this case, it is about the creation of a unique model in Portugal of training in Higher Education, to train students with intellectual difficulties who want to continue their studies, improve their social, professional and digital skills and, above all, enhance a set of skills, attitudes and behaviours essential for their social and labour inclusion in the labour market. It is further added that this model is only possible with the addition of formal and academic education to the non-formal and informal education component of each student. This means that it is necessary to ensure that this training model is fully adapted to the social, pedagogical and emotional needs of each student, and it is essential to situate and understand the importance of two agents involved in this process: (i) families, who are the starting point for the motivation of this target audience and (ii) volunteers, who are from stakeholders, technicians to trainers and other students.

PALAVRAS-CHAVE

literacia digital, inclusão social, inclusão digital, formação, ensino superior

NOTA CURRICULAR DOS AUTORES

Maria Potes Barbas é Doutorada em Comunicação e Educação Multimédia pela Universidade Aberta, Pós-Doutorada pela Universidade de Aveiro (UA) e Agregada em Educação com especialização em e-learning pela Universidade Aberta. É Professora Coordenadora Principal na Escola Superior de Educação (ESE) do Instituto Politécnico de Santarém (IP Santarém) e Professora Associada (30%) na Universidade Aberta. Além disso, coordena o Gabinete de Projetos e Internacionalização na ESE de Santarém e é Presidente da Unidade de Investigação do IP Santarém. É avaliadora da Comissão Europeia em TIC e na dimensão da ética (Humans and Data Protection). Foi ainda embaixadora do programa E-skills jobs for future em Portugal. 

Pedro Matos, Licenciado e Mestre em Educação e Comunicação Multimédia pela ESE do IP Santarém, é Professor Assistente Convidado na ESE e na Escola Superior de Gestão e Tecnologia (ESGT) do IP Santarém e Investigador Convidado no Polo Literacia Digital e Inclusão Social. É igualmente Produtor Multimédia no Gabinete de Projetos e Internacionalização da ESE de Santarém.

Cristina Novo, Professora Adjunta do Departamento de Tecnologias Educativas da ESE/IP Santarém, é Professora Especialista em Educação e Comunicação Multimédia, Mestre em Multimédia e Especializada em Apoio Educativo a Populações Especiais. Desenvolve trabalhos na área de integração das TIC no processo de ensino e aprendizagem nos ensinos básico e superior. Coordena o Centro de Competência TIC ESE/IP Santarém e o Departamento de Tecnologias Educativas.

Helena Luís é Professora Adjunta do Departamento de Educação e Currículo da ESE/IP Santarém. Atua nas áreas de Ciências Sociais com ênfase em Psicologia e em Ciências da Educação.Tem o reconhecimento, pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, na Especialidade Avançada de Necessidades Educativas Especiais.

Nádia Lopes, Licenciada e Mestre em História - História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Pós-Graduada em Recursos Digitais em Educação pela Escola Superior de Educação do IP Santarém, é Professora Assistente Convidada na ESE do IP Santarém, Investigadora Convidada no Polo Literacia Digital e Inclusão Social, e voluntária na Unidade de Investigação do IP Santarém. Colaboradora no Gabinete de Projetos e Inovação da ESE de Santarém.

Mário José encontra-se a realizar Mestrado em Recursos Digitais em Educação na ESE de Santarém. Licenciado em Educação e Comunicação Multimédia, atualmente é Professor Assistente Convidado na ESE de Santarém e também possui uma bolsa projeto do BPI, “Escape Room - a entrevista". É membro da Unidade de Investigação do IP Santarém no domínio das Ciências Sociais e Humanidades e na subárea de Media e Comunicação. Colabora no Gabinete de Projetos e Internacionalização da ESE de Santarém, onde presta apoio a diferentes projetos europeus e nacionais ("Escape Room - a entrevista"; Starting Up 4 Inclusion; Literacia Digital para o Mercado de Trabalho). 

Uma visão geral do estado da arte atual e a relação com a formação Literacia Digital para o Mercado de Trabalho

O Curso Literacia Digital para o Mercado de Trabalho, tendo por base diversos estudos, relatórios, iniciativas e projetos, de contexto nacional e internacional, pretende garantir uma estratégia holística que colmate as necessidades do público-alvo (jovens com dificuldades intelectuais) e que compreenda o atual paradigma de Educação Inclusiva e as suas estratégias de inclusão social e digital. Nesse sentido, um dos aspetos fundamentais para a implementação deste curso passou por uma revisão da literatura e um estudo do estado da arte aprofundados. Deste modo, dividiu-se este processo de revisão em duas partes:

  • Uma, com maior incidência em estratégias de inclusão social, educativa e digital.
  • A outra, com um foco consideravelmente mais segmentado para a temática da literacia digital.

O processo de revisão da literatura permitiu delinear o fluxo investigativo que sustentou, de uma forma polivalente, a implementação de uma formação única e adaptada a um público-alvo específico, num contexto de ensino superior.

Assim, como ponto de partida para o estudo desta formação, foi tido em conta o Relatório de Progresso sobre a implementação da Estratégia Europeia para a Deficiência (2010 - 2020) (European Commission, 2017), que indica um conjunto de situações que passam, entre outras coisas, pelo envelhecimento da população europeia e pelo facto de que, à medida que a população da UE envelhece, o número de europeus com deficiência aumenta significativamente. Deste modo, prevê-se que em 2020 cerca de 120 milhões de europeus tenham uma deficiência. Ainda sobre este tipo de indicadores, a Estratégia Europeia para a Deficiência (2010 – 2020) (EC, 2017) indica que as pessoas com deficiência têm o direito de trabalhar em pé de igualdade com outras pessoas, sendo que a Diretiva relativa à igualdade de emprego proíbe a discriminação no emprego. Porém, são ainda identificados desafios de grande escala no acesso ao mercado de trabalho por parte deste público-alvo. Estes são ainda mais visíveis no contexto de crise económica, que dificultou a melhoria da situação laboral das pessoas com deficiência: apenas 48,7% tiveram acesso a estas condições, enquanto a percentagem das pessoas sem deficiência que lhes acederam foi 72,5%.

No que toca ao acesso a uma educação inclusiva e de qualidade, este indicador continua a ser evasivo para muitas pessoas com deficiência. Com efeito, cerca de 22,5% dos jovens com deficiência são dispensados precocemente de vários cenários de educação e formação, contra 11% para os alunos sem deficiência. Além disso, apenas cerca de 29,5% das pessoas com deficiência (faixa etária 30-34) concluíram o ensino superior ou equivalente, contra 42,5% para pessoas sem deficiência.

Finalmente, 30% das pessoas com deficiência estão em risco de pobreza ou exclusão social na UE, contra 21,5% das pessoas sem deficiência. O grau de incapacidade - grave ou moderado - aumenta significativamente o risco de pobreza ou exclusão social.

Este enquadramento permite-nos ter uma visão geral sobre o cidadão com deficiência e as suas principais necessidades e dificuldades de inserção efetiva nos contextos educacional e laboral, sendo importante focar o aspeto educativo que esta formação assume como desafio prioritário para a inclusão social e educacional de jovens com deficiência intelectual. Para tal, o mais recente relatório do Grupo de Trabalho do ET2020 sobre o Ensino Superior - "Inclusão no Ensino Superior: Promovendo oportunidades de mudança de vida para pessoas de grupos sub-representados. Conclusões políticas da Atividade de Aprendizagem pelos Pares em Bruxelas" – resumiu alguns dos contextos, resultados e boas práticas mais significativos no que diz respeito à inclusão no ensino superior e à promoção de oportunidades ao longo da vida que beneficiem pessoas de grupos desfavorecidos ou socialmente menos representados. Embora os tópicos "inclusão", "acesso a todos" e "qualidade" sejam vistos como peças fundamentais para o futuro das Instituições de Ensino Superior (IES), ainda existem poucas oportunidades para um público-alvo como o das pessoas com deficiência, migrantes e outros grupos sub-representados, que não encontram a mesma igualdade para ingressar no ensino superior ou para completar um curso superior. Este documento afirma ainda que é necessária uma abordagem mais abrangente das políticas de inclusão do ensino superior, embora tenham sido feitos alguns progressos, como, por exemplo, em alguns dos países da Atividade de Aprendizagem de Pares (Peer Lwearning Activity – PLA). Existem algumas recomendações que este relatório considera essenciais para a implementação bem-sucedida das políticas de inclusão neste domínio, tais como:

  • Estabelecer uma política mista capaz de responder às necessidades destes grupos desfavorecidos quando estão integrados no ensino superior;
  • Definir uma estratégia abrangente e a adoção de um compromisso político a longo prazo para reforçar a inclusão no ensino superior;
  • Implementar uma abordagem governamental no seu conjunto destinada a criar estratégias de mudança de políticas fundamentais que abordem as desvantagens educacionais deste público-alvo;
  • Identificar estratégias holísticas e políticas coerentes capazes de responder a estes problemas;
  • Promover a colaboração entre instituições de ensino superior, escolas e comunidades locais que promovam a inclusão (partilha de boas práticas).

Por último, quando realizada uma análise às políticas que serviram de base para a promoção da inclusão no ensino superior, entende-se que são ainda necessários investimentos a vários níveis (social, educativo, tecnológico e profissionalizante) para que este tipo de sistemas seja capaz de oferecer uma resposta ágil e adequada a estes grupos e comunidades mais desfavorecidos. Particularmente, no que diz respeito à medição dos progressos em direção a metas inclusivas, ao acompanhamento dos efeitos pretendidos e não intencionais das políticas de inclusão e à análise da complexidade dos fatores subjacentes a estes processos. Além disso, é ainda necessário um maior investimento na formação do pessoal docente no ensino superior no sentido de melhorar e adaptar as práticas de aprendizagem e ensino aos alunos de grupos desfavorecidos, particularmente aos estudantes com dificuldades intelectuais e com grau de incapacidade igual ou superior a 60% (European Commission, 2019).

No que toca à dimensão da literacia digital, é importante considerar o panorama nacional em termos de evolução tecnológica e de acesso às tecnologias de informação e comunicação. Nesse sentido, o relatório realizado em 2019 pela Comissão Europeia sobre o Índice de Digitalidade da Economia e da Sociedade (IDES) demonstra que Portugal ocupa o 19.º lugar entre os 28 Estados-Membros da EU em termos de “Conectividade”, “Capital Humano”, “Utilização de serviços Internet”, “Integração das tecnologias digitais” e “Serviços públicos digitais” (European Commission, 2019). Apesar de Portugal ter apresentado melhorias significativas, com pontuações ligeiramente superiores em comparação com o relatório do ano anterior em quatro das dimensões apresentadas, o país continua com um fraco desempenho na dimensão do “Capital Humano”. Assim, Portugal ocupa o 23.º lugar entre os 28 Estados-Membros e apresenta uma pontuação significativamente inferior à média da UE. Segundo a Comissão Europeia (2017), no ano de 2017, metade da população portuguesa carecia de competências digitais básicas e cerca de 30 % não tinha quaisquer competências digitais, querendo isto dizer que não utilizava tecnologias no seu quotidiano, nem nunca tinha navegado na rede Internet (média da UE: 43 % e 17 %, respetivamente). Era, pois, uma população digitalmente não alfabetizada. Porém, ainda sobre a dimensão da literacia digital, foram implementadas várias iniciativas ao longo dos últimos anos, com vista à redução destes números. Uma das estratégias adotadas passou pela criação da Iniciativa Nacional Competências Digitais e.2030 (Portugal INCoDe.2030), que pretende reforçar o quadro de competências da cidadania portuguesa neste domínio através de cinco eixos de ação principais: “Inclusão”; “Educação”; “Qualificação”; “Especialização” e “Investigação”. De notar que estes referenciais não apresentam dados suficientemente concretos sobre a aplicabilidade deste tipo de estratégias em públicos-alvo como o das pessoas com deficiência intelectual. É nesse sentido que a formação em Literacia Digital para o Mercado de Trabalho nasce e traça como prioridade a inclusão social, educativa e digital de estudantes com dificuldades intelectuais num contexto de ensino superior.

Acrescenta-se que esta formação se encontra em linha com o relatório realizado em 2017 pelo Grupo de Trabalho Necessidades Especiais na Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que verifica a pertinência deste tipo de ofertas para o público-alvo em questão, particularmente, no que toca ao tópico das “Recomendações: suporte à melhoria e à mudança”, através da apresentação de propostas de melhoria e mudança no acesso ao ensino superior por parte dos cidadãos com necessidades especiais (GT-NECTES, 2017).

Além disso, segundo os dados estatísticos avançados pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), verifica-se que em 2019/2020 se encontravam 2 311 alunos com necessidades especiais de educação inscritos em estabelecimentos de ensino superior em Portugal, 87,8% dos quais no ensino público e 12,2% no ensino privado (DGEEC, 2019). Entre estes números, é ainda verificável que apenas 406 estudantes conseguiram terminar um ciclo de estudos e diplomar-se. Assim, entende-se a importância de existir um modelo de formação adequado às diversas necessidades dos estudantes com necessidades especiais de educação, particularmente daqueles com dificuldades intelectuais, que ficam mais facilmente fora do sistema educacional superior. Como tal, a formação Literacia Digital para o Mercado de Trabalho é a única resposta que, até ao momento, oferece este tipo de resposta adaptada, flexível e personalizada para jovens estudantes com dificuldades intelectuais, sendo a primeira formação desta natureza em Portugal e que já tem perspetivas de disseminação por todo o país e repercussão noutros países da Europa.

Por fim, é ainda importante referir que esta formação se enquadra num dos 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável traçados pelas Nações Unidas. Neste caso, o objetivo “4. Educação de Qualidade”, especificamente, no ponto “Até 2030, eliminar as disparidades de género na educação e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência, povos indígenas e crianças em situação de vulnerabilidade.“ (UNRIC, 2018). 

A formação inclusiva Literacia Digital para o Mercado de Trabalho

A formação que aqui se apresenta iniciou-se em outubro de 2018, na ESE do IP Santarém, como um curso pioneiro em Portugal que se inspira num modelo com 12 anos de funcionamento na Universidade Autónoma de Madrid, modelo esse não conferente de grau, que se destina a jovens com Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental (DID). A oferta criada em Portugal partilha o mesmo tipo de estrutura, em termos de plano de estudos, que a oferta da Universidade Autónoma de Madrid, no sentido em que: “O plano de estudos é estruturado seguindo duas premissas fundamentais. Por um lado, reforçar a inclusão do trabalho dos alunos através da aprendizagem das competências profissionais e, por outro lado, complementar o que precede, contribuir para o desenvolvimento pessoal e social dos alunos através de estudos humanistas centrados nos valores, na educação emocional e na aquisição de competências sociais” (Gasset & Herrero, 2017).

Assim, os objetivos fundamentais deste curso são:

  • Formar jovens com necessidades especiais, visando o desenvolvimento das competências necessárias ao desempenho de uma profissão com empregabilidade sustentável;
  • Desenvolver eskills e softskills que lhes permitam responder aos desafios societais;
  • Formar, em networkings, potenciais empregadores e mentores para que possam estabelecer laços e um acompanhamento sustentado dos jovens nos locais de trabalho;
  • Estabelecer parcerias com empresas empreendedoras que apostem no domínio da criação de empregos inclusivos;
  • Promover a interação entre o meio empresarial e instituições de ensino e investigação.

Embora esta formação não confira qualquer grau ou título, os estudantes receberão uma certificação que os habilitará ao exercício de profissões nas áreas administrativa, hoteleira, saúde, comunicação, marketing, entre outras. A 1.ª edição do curso conta com 11 inscritos, selecionados de entre 18 candidatos. A formação de quatro semestres letivos[1] foi apresentada e aprovada nos órgãos próprios da ESE do IP Santarém. É importante realçar que os estudantes deste curso têm origem em várias regiões do país, como Santarém, Lisboa e Évora. Acreditamos que a aposta na implementação desta formação é muito relevante e fundamental para a construção de uma sociedade mais inclusiva, na medida em que é direcionada para a empregabilidade, potenciando, melhorando e facilitando a construção do perfil profissional de cada estudante.

A metodologia adotada na implementação deste projeto formativo é pertinente no contexto do Ensino Superior em geral, pelo facto de ser uma implementação experimental, estudada/investigada e avaliada, o que corresponde a uma das missões fundamentais das instituições de ensino superior (IES): construir conhecimento com um corpo docente altamente qualificado. A conceção desta oferta ocorre no pleno exercício da autonomia pedagógica e científica de que as instituições de ensino superior estão investidas, permitindo assim que o trabalho que os docentes dedicam a esta formação, justamente pelo que está implicado no trabalho de docência (e na própria carreira), seja considerado, atribuído e valorizado em plano de igualdade com o trabalho de docência de toda a restante formação inicial.

A relevância de esta oferta ocorrer no contexto do ensino superior deve-se também ao facto de oferecer aos jovens a possibilidade de imersão num ambiente de aprendizagem estimulante, “habitado” por pessoas da sua idade, com quem naturalmente se podem identificar em vários aspetos, e à convicção de que esses elos de identificação, de comunicação e relacionamento são, eles próprios, promotores de bem-estar e de aprendizagem (para todos). Isso mesmo evidencia a experiência da equipa da Universidade Autónoma de Madrid, de quem recebemos a inspiração e o saber que nos propusemos adaptar à realidade portuguesa com a constituição, a nível científico, de um Polo em Literacia Digital e Inclusão Social[2].

Além disso, esta metodologia de formação não-formal e adaptada a um público-alvo tão específico é igualmente pertinente no contexto do ensino superior politécnico, em particular, porque oferece, não uma formação "avançada" (conferente de grau) mas uma formação de natureza técnico-prática com o intuito de preparar para um trabalho autónomo. Isto constitui outro elemento de pertinência relativamente àquela que é a missão deste subsistema do ensino superior. O mesmo se aplica à ideia de que a investigação que se produz neste contexto, precisamente dada a natureza da sua missão, se reveste de algumas particularidades (entre outras, o carácter de ligação a práxis profissionais, a contextos).

Por fim, no que toca ao processo metodológico deste tipo de estratégias formativas, é de assinalar o facto de ser adequado a um contexto de uma Escola Superior de Educação, sendo que este é um dos locais com maior escalabilidade para a formação de educadores para todo o sistema educativo, e onde os formadores, por maioria de razão, terão as melhores condições para garantir a maior qualidade de ensino a que os jovens têm direito. É adequado também porque todos os docentes, independentemente da sua área específica, estão “interligados” com a Educação, investigam em Educação, estão sensíveis à procura de melhoria e do seu próprio desenvolvimento profissional como formadores, e porque este último, quando ocorre, só valoriza as próprias instituições de ensino superior.

Resultados

A formação Literacia Digital para o Mercado de Trabalho, durante os anos letivos 2018-19/2019-20, alcançou um conjunto de resultados relevantes no que toca ao despertar de consciências para a necessidade de integração desta população nas instituições de ensino superior, ao alcance de um conjunto de efeitos positivos nos jovens que a frequentam, sejam efeitos no seu desempenho, seja na forma como se relacionam, na sua autoestima ou mesmo na sua autonomia enquanto cidadãos adultos. Esta área da inclusão social tem gerado crescente interesse na sociedade portuguesa, tornando-se numa prioridade para as políticas educacionais e socioeconómicas, como o prova a Lei 4/2019, que estabelece o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%. Paralelamente, o tema da literacia digital também tem vindo a emergir, devido à constante transformação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e sua integração em contextos escolares, profissionais e familiares, tornando- se assim imprescindível para o dia a dia dos cidadãos.

Desse modo, e dada a relevância da temática, esta formação apresentou resultados nas seguintes dimensões: Social; Pedagógica; Política; Profissional; Tecnológica; Económica.

Assim, como resultados na dimensão Social, este curso potenciou o seguinte:

  • Conhecimento e competências na ativação para uma aprendizagem efetiva em contextos inclusivos;
  • Efeitos positivos para as famílias dos jovens que consigam integrar o mercado de trabalho, assim como para as suas comunidades locais (melhor autoestima para os elementos do grupo-alvo);
  • Menos pressão nas suas famílias, no que diz respeito às preocupações destas com o futuro dos seus filhos, e melhor interação com a comunidade, já que estes jovens cidadãos se tornam mais autónomos e autossuficientes;
  • Inclusão social da juventude em risco na sociedade e no futuro mercado de trabalho.

No que se refere à dimensão Pedagógica, esta formação apresentou os seguintes resultados:

  • Um modelo único e totalmente adaptado de formação em Literacia Digital com a componente de Inclusão Laboral, em contexto de ensino superior, focado na inclusão de jovens com incapacidades intelectuais. Este modelo foi reconhecido por várias entidades a nível nacional como boa prática a disseminar;
  • Um currículo/plano de estudos centrado nas necessidades deste público-alvo e nas diferentes realidades do mercado de trabalho. Este currículo demonstrou ser capaz de: (i) Capacitar os jovens para trabalharem em diferentes contextos laborais da esfera pública e privada; (ii) Dotar os jovens de ferramentas de adaptação a diferentes culturas empresariais; (iii) Mostrar que esta iniciativa proporciona os meios para que estes jovens saibam como trabalhar em equipa, sejam capazes de refletir sobre a sua prática e se mostrem implicados de uma forma responsável nas atividades em contexto de trabalho;
  • Um Guia Prático (Handbook) que reúne todos os resultados, dados estatísticos, estratégias pedagógicas, sociais, digitais e profissionais implementadas, estudos e outros elementos quantitativos e qualitativos que foram recolhidos ao longo dos dois anos da formação. Este Handbook[3] encontra-se disponível como ferramenta disseminadora, para que todas as IES a nível nacional possam replicar esta boa prática.

No que toca à dimensão Política, este projeto contribuiu para a promoção de reformas necessárias e o melhoramento do progresso no ensino e aprendizagem em diferentes instituições: “triângulo do conhecimento” da área de investigação europeia  ̶  investigação, inovação e educação. Acresce ainda mais a sua importância com o novo quadro legal, em vigor a partir deste ano, que obriga à contratação de pessoas com deficiência em entidades com mais de 75 colaboradores (Decreto-Lei n.º 4/2019, 10 janeiro).

Relativamente à dimensão Profissional, esta formação possibilitou a integração de 11 estágios profissionalizantes e remunerados para os estudantes do curso Literacia Digital para o Mercado de Trabalho. A contribuição monetária para os estudantes partiu de vários protocolos com as empresas e stakeholders envolvidos neste projeto inclusivo. Algumas das empresas já contavam com experiências semelhantes, ao terem participado, em anos anteriores, em iniciativas da mesma natureza. Entre estas empresas, algumas destacam-se por serem detentoras da “Marca Entidade Empregadora Inclusiva”, que se destina a promover o reconhecimento e a distinção pública de práticas de gestão abertas e inclusivas, desenvolvidas por entidades empregadoras relativamente às pessoas com deficiência e incapacidade (Instituto do Emprego e Formação Profissional, 2015).

Quanto à dimensão Tecnológica, este projeto teve como resultados:

  • A integração e a implementação de plataformas digitais, adaptáveis e flexíveis, bem como a divulgação de todos os vídeos, apresentações digitais e fotografias criados ao longo destes dois anos letivos, particularmente através do uso do Padlet como plataforma mediadora e de partilha dos conteúdos de aprendizagem para os estudantes. Aliás, a utilização desta ferramenta com este público-alvo justifica-se, essencialmente, porque “disponibiliza um ‘muro’ multimédia gratuito que pode ser usado para incentivar a participação e avaliação em tempo real da classe inteira. (...) Visto que permite aos alunos que escrevam as suas ideias em sticky notes e depois coloquem essas mesmas notas numa grande folha virtual. O Padlet proporciona uma experiência única e intuitiva, sendo uma ferramenta útil no domínio da literacia digital, visto que funciona com uma variedade de dispositivos diferentes, não requer que os participantes criem contas para usá-lo, e não requer nenhum know-how técnico especial” (Fuchs, 2014).
  • A criação de um grupo na aplicação WhatsApp com todos os estudantes, por meio do qual, de forma mais fácil e rápida, se pudesse transmitir todas as informações relativas ao curso e onde os estudantes pudessem também tirar dúvidas. Rapidamente este grupo se tornou no maior veículo de comunicação entre os estudantes e entre eles e a coordenação do curso. Este grupo de comunicação no WhatsApp resultou num estudo e numa análise mais aprofundados, correspondendo a uma análise de discurso nos media, visto que, desde o dia 26 de setembro de 2018 até ao dia 17 de fevereiro de 2019, foram contabilizadas mais de 3.000 mensagens sobre assuntos diversos entre os estudantes.
  • O desenvolvimento de um modelo de CV em formato digital e acessível através de código QR, que pudesse ser utilizado pelos estudantes da formação. Este modelo seguiu uma estrutura adaptada (grafismo, tipografia, cor e elementos interativos) de forma a ser facilmente preenchido e utilizado pelos alunos. Este modelo designou-se por e-portefólio[4] e foi premiado com a distinção de Inovação no Concurso Poliempreende 2019.

Por fim, no que diz respeito à dimensão Económica, esta formação resultou num formato de integração e partilha do projeto para a sua disseminação nas entidades locais, empresas e ONG, melhorando a sua visibilidade e facilitando a integração deste público-alvo no mercado de trabalho, desta forma promovendo não somente a geração de rendimento económico, como a competitividade entre instituições.

Apraz-nos ainda registar que este curso é detentor do 1.º selo Ação INCoDe.2030[5], atribuído por proposta do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, reconhecendo-se assim publicamente o elevado mérito que encerra. Além disso, este projeto recebeu um prémio, atribuído pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ACES Lezíria), intitulado "Movimento Escola de Afetos, Escola de Sucesso"[6]. Este curso tem contribuído para a mudança de políticas a nível nacional (Parecer da Secretaria-Geral da Educação e Ciência sobre a Formação em “Literacia Digital para o Mercado de Trabalho”[7]) e internacional (Inclusion in higher education – Promoting life changing opportunities for people of under-represented group[8]). Em novembro, iremos disseminar este curso em todas as IES de Portugal.

Conclusão

A criação deste curso contribuiu para que jovens com Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais (DID) sejam mais autónomos e contribuintes ativos nas causas sociais e ambientais - vejam-se os resultados obtidos com a avaliação personalizada em cada unidade curricular no Curso (“Eu Aprendi")[9] e a articulação construída com o mercado de trabalho[10].

Outro objetivo a cumprir com este curso será assegurar, de forma eficaz e ágil, a disseminação das boas práticas adquiridas com este modelo de formação e partilhá-las com os politécnicos, universidades e instituições/associações, para que este tipo de estratégia única e pioneira possa ser replicada por Portugal Continental e pelas Ihas.

No entanto, uma das conclusões a que se chega após a concretização deste projeto é a de que continua a existir um elevado fosso de conhecimento no que respeita aos fatores-chave de sucesso da inclusão das pessoas com DID no mercado de trabalho. Não há estudos científicos e análises relevantes suficientes sobre as competências-chave das pessoas com deficiência e as suas necessidades de desenvolvimento para a inclusão no mercado de trabalho. Além disso, falta a identificação das principais competências em literacia digital, bem como do seu papel na facilitação do processo de inclusão. No entanto, estudos e iniciativas empíricas, como esta formação, mostraram-nos a importância do papel que o desenvolvimento das competências de literacia digital tem vindo a desempenhar em termos das perspetivas de empregabilidade deste grupo.

A falta de abordagens, métodos e recursos integrados limita a oferta para este grupo-alvo, não só em termos dos seus processos educativos e de formação, mas também em termos de mecanismos de comunicação e mentoria. Devem ser identificados, desenvolvidos e cientificamente validados métodos, recursos e abordagens eficazes e bem-sucedidos para promover a inclusão social, digital e laboral das pessoas com deficiência. Além disso, a criação de um modelo holístico que possa definir e implementar estratégias de investigação assegurará uma bateria de indicadores científicos e tecnológicos neste domínio.

Como tal, existe ainda um caminho a percorrer para que estas práticas sejam adicionadas como base de conhecimento ao estado da arte em competências, práticas e formas de prosseguir para promover a empregabilidade de pessoas com DID. Assim, é necessário ainda realizar uma compilação de experiências, estudos empíricos e outras iniciativas para medir os resultados efetivos que estas estratégias acarretam, quer para o público-alvo, quer para todos os intervenientes envolvidos. Além disso, a importância de definir um modelo holístico, cientificamente validado, que aborde os diferentes fatores que são cruciais para o sucesso, em termos de peso e papel, para aumentar a probabilidade de sucesso e eficácia na empregabilidade de pessoas com dificuldades intelectuais é ainda uma missão a desenvolver e implementar.

REFERÊNCIAS

Centro de Informação Regional das Nações Unidas para a Europa Ocidental (2017). Guia sobre Desenvolvimento Sustentável - 17 OBJETIVOS PARA TRANSFORMAR O NOSSO MUNDO. Disponível em https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel/

Comissão Europeia (2019). Índice de Digitalidade da Economia e da Sociedade (IDES). Relatório por País de 2019. Disponível em https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/scoreboard/portugal

DGEEC (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (2019). Inquérito às NEE nos Estabelecimentos de Ensino Superior –2019/2020. Disponível em https://www.dgeec.mec.pt/np4/428/

ET2020 Working Group on Higher Education (2019). Inclusion in higher education – Promoting life changing opportunities for people of under-represented groups. Policy conclusions from the PLA in Brussels, 11-12 April 2019. Disponível em http://w3.ese.ipsantarem.pt/literaciadigital/wp-content/uploads/2020/04/PLA-Social-Inclusion_Policy-Conclusions-1.pdf

European Comission (2017). Progress Report on the implementation of the European Disability Strategy (2010 - 2020). COMMISSION STAFF WORKING DOCUMENT. Disponível em https://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=1484

European Comission (2019). Inclusive and connected higher education. Disponível em https://ec.europa.eu/education/policies/higher-education/inclusive-and-connected-higher-education_en

Fuchs, B. (2014). The writing is on the wall: using Padlet for whole-class engagement. LOEX Quarterly40(4), 7.

GT-NECTES (Grupo de Trabalho para as Necessidades Especiais na Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (2017). Relatório Final. Disponível em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/documento?i=relatorio-final-do-grupo-de-trabalho-para-as-necessidades-especiais-na-ciencia-tecnologia-e-ensino-superior

Instituto do Emprego e Formação Profissional (2015). Marca Entidade Empregadora Inclusiva. Disponível em https://iefponline.iefp.pt/IEFP/medMarcaEntidadeEmpregadoraInclusiva2.do?action=overview

Izuzquiza Gasset, D., & Rodríguez Herrero, P. (2016). Inclusion of people with intellectual disabilities in university. Results of the Promentor program (UAM-PRODIS, Spain). Siglo Cero: Revista Española sobre Discapacidad Intelectual, vol. 47, n.º 260, pp. 27-43.

NOTAS

[1]Plano de estudos da formação Literacia Digital para o Mercado de Trabalho. Disponível em http://w3.ese.ipsantarem.pt/literaciadigital/p-estudos/

[2] Polo em Literacia Digital e Inclusão Social. Disponível em http://pololiteraciadigital.ipsantarem.pt/

[3] Handbook oficial da Formação Literacia Digital para o Mercado de Trabalho. Disponível em http://w3.ese.ipsantarem.pt/literaciadigital/handbook/

[4] Modelo CV E-portefólio. Disponível em https://www.docdroid.net/8kYNrJs/cv-literacia-digital-pdf

[6] Prémio “Movimento Escola de Afetos, Escola de Sucesso”. Disponível em http://w3.ese.ipsantarem.pt/literaciadigital/wp-content/uploads/2019/07/Carta-de-Compromisso.pdf

[7] Parecer da Secretaria-Geral da Educação e Ciência. Disponível em http://w3.ese.ipsantarem.pt/literaciadigital/wp-content/uploads/2019/07/Inf-G24-de-2019.pdf

[8] Inclusion in higher education – Promoting life changing opportunities for people of under-represented groups. Disponível em http://w3.ese.ipsantarem.pt/literaciadigital/wp-content/uploads/2020/04/PLA-Social-Inclusion_Policy-Conclusions-1.pdf

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