“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.
Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um facto. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contacto interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.”
in A Hora da Estrela (2002). Relógio D’Água
Manuscrito original de A hora da estrela / Acervo Clarice Lispector / IMS
A Hora da Estrela é um dos títulos de Clarice Lispector mais traduzidos em todo o mundo. Em 2017 comemorou-se os 40 anos do lançamento deste título.
O romance narra as desventuras de Macabéa, uma rapariga sonhadora e ingénua que abandona o nordeste e vai viver para o Rio de Janeiro, onde a adaptação social não é fácil para ela. Macabéa leva uma vida simples e sem grandes emoções. Começa a namorar Olímpico de Jesus, mas nem tudo corre bem…
«A Hora da Estrela ou “as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.” De um lado a “terra serena da promissão, terra do perdão” do outro, o sufoco, o vale-tudo, a agressão da “cidade inconquistável” – os dois brasis.”»
Eduardo Portella, na apresentação da edição brasileira de A Hora da Estrela.
A Hora da Estrela inquieta o leitor com questões filosóficas e existenciais que tornam este romance tão peculiar. O livro foi adaptado ao cinema por Suzana Amaral em 1985.
Trailer do filme A Hora da Estrela
“Será mesmo que a acção ultrapassa a palavra?
Mas que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar. Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo, portanto, não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força da lei”.
(…) Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.”
in A Hora da Estrela
“Clarice Lispector (1920-1977) foi um dos maiores nomes da literatura brasileira do Século XX. Com seu romance inovador e com sua linguagem altamente poética, sua obra se destacou diante dos modelos narrativos tradicionais.” Conheça, de forma mais aprofundada, a curiosa e extraordinária biografia de Clarice Lispector.
“Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão - os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de idade haviam-lhe morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas. Muito depois fora Maceió com a tia beata, única parente sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia dando-lhe cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. (…) Apesar da morte da tia, tinha a certeza de que com ela ia ser diferente, pois nunca ia morrer (É paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela.)“
Mais de 30 anos após a morte de Clarice Lispector, a Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, apresentou a exposição ‘A hora da Estrela’, integrada nas comemorações do Ano do Brasil em Portugal (2014). Divulgar a obra de uma das mais destacadas vozes da literatura brasileira foi um dos objetivos da exposição.
Vista da exposição ‘Clarice Lispector – A hora da Estrela na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2014.
"Amo a língua portuguesa", declarou um dia a escritora brasileira que nasceu na Ucrânia. Clarice Lispector queria que esta língua chegasse ao máximo pelas suas mãos. Publicou 26 livros, obra inquietante e misteriosa que a tornou uma autora de culto.
O jantar de Clarice Lispector e Chico Buarque
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