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Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online
Group reading. A case study about online reading practices
Rita Duarte, Jorge Vieira e José Soares Neves

RESUMO

A partir de um estudo feito sobre o uso das redes sociais online (RSO) por leitores de livros, este artigo pretende explorar a prevalência das práticas de leitura em grupo no meio digital, contextualizando esta prática com o fenómeno dos clubes de leitura, que precederam o advento da Internet (Sedo, 2003; Griswold, McDonnell e Wright, N., 2005; Radway, 1991).

Através de entrevistas semiestruturadas mediadas pelas RSO a um grupo de jovens, leitores ávidos, conclui-se que a leitura em grupo é uma prática comum entre os entrevistados, assumindo, no entanto, formas que vão além do "clássico" clube de leitura. Desta forma, a Internet é utilizada como ferramenta de mediação para discutir o livro através de meios tão diversos como grupos de WhatsApp, servidores do Discord, caixas de comentários em blogues de leitura, fóruns, e partilhas nas RSO.

Traça-se ainda um paralelismo entre as características sociodemográficas do grupo em análise — maioritariamente mulheres, jovens, com altos níveis de escolaridade e de classe média — e as características da classe leitora, tal como apresentado por Griswold, McDonnell e Wright (2005).

ABSTRACT

Based on a study about how Social Networking Sites (SNSs) are used by book readers, this article aims to explore how prevalent group reading is in the digital world. Context is provided on the relationship with online book reading and book clubs – considering that book clubs preexist the internet (Sedo, 2003; Griswold, McDonnell, e Wright, 2005; Radway, 1991).

Using semi-structured interviews guided by SNSs to a group of young keen readers, this study finds that group reading is a common practice among participants, and that it takes several forms, going beyond the “traditional” book club. The internet is thus used as a mediating tool to discuss books and reading, through means as diverse as WhatsApp groups, Discord servers, comments on reading blogs, forums, and ‘shares’ on SNSs.

This study also finds common sociodemographic features between participants — mainly highly educated, middle class young women — with the features of the reading class as presented by Griswold, McDonnell and Wright (2005).

PALAVRAS-CHAVE

classe leitora, redes sociais online, leitura digital, clubes de leitura

KEYWORDS

reading class, social networking sites, e-reading, book clubs

NOTA CURRICULAR DOS AUTORES

Rita Duarte é licenciada em Sociologia pelo Iscte-Instituto Universitário de Lisboa e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pela mesma universidade. Tem como principais áreas de investigação a cultura e os novos média.

Jorge Vieira é atualmente Professor Auxiliar no Iscte-Instituto Universitário de Lisboa e subdiretor do Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação. É doutorado em Sociologia e, além da docência, desenvolve investigação no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte) e no OberCom-Observatório da Comunicação enquanto investigador integrado. Media e cultura, e a forma como se interligam, são as suas principais áreas de interesse.

José Soares Neves é doutorado em Sociologia da Comunicação, da Cultura e da Educação (Iscte–Instituto Universitário de Lisboa). É investigador integrado e subdiretor do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte) e professor no Departamento de Sociologia/Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Iscte. Foi investigador permanente e coordenador de projetos do Observatório das Atividades Culturais (OAC) durante a sua existência (1996 a 2013) e Presidente do Grupo de Trabalho sobre Estatísticas da Cultura (GTEC) do Conselho Superior de Estatística (2006 a 2010). É diretor do Observatório Português das Atividades Culturais (OPAC) desde a criação em dezembro de 2018. 

INTRODUÇÃO

Muitos estudos focam a forma como as novas tecnologias e as novas configurações de leitura vieram redefinir o que significa ler e ser um leitor. E, dentro do universo dos grandes leitores, são comuns as práticas coletivas de leitura, como, por exemplo, o clube de leitura (Sedo, 2003; Griswold, McDonnell e Wright, 2005; Griswold, Lenaghan e Naffziger 2011; Radway, 1991; Long, 1992).

Neste artigo[1] recorremos a dados qualitativos recolhidos através de entrevistas semiestruturadas mediadas pelas redes sociais online (RSO) e exploramos as práticas de leitura em grupo de um conjunto de leitores ávidos, jovens, e utilizadores assíduos da internet e das RSO.

É apresentada inicialmente uma contextualização sobre a leitura enquanto prática social e o clube de leitura, sendo que este artigo explora também conceitos que são operacionalizados ao longo da análise, como o de classe leitora e de leitor ávido, tal como foram apresentados por Griswold, McDonnell e Wright (2005) e Griswold, Lenaghan e Naffziger (2011), o primeiro, e por Signorini (2003), o segundo.

Através dos dados recolhidos nas entrevistas, é traçado o perfil socioprofissional dos participantes deste estudo, e em seguida é analisado o modo de relação destes com os clubes de leitura, e com a Internet enquanto ferramenta para a leitura em grupo.

1. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

1.1. A leitura enquanto prática social e o clube de leitura

Regra geral, associa-se a leitura de livros a uma prática solitária, aquilo a que Long chama de “ideologia do leitor solitário”[2] (Long 1992: 110). Contudo, a leitura é uma prática que não só é ensinada, como também é socialmente mediada (Griswold, McDonnell e Wright, 2005: 134; Long, 1992: 108). Como afirmam Gustavo Cardoso e Emanuel Cameira, “o ato solitário de ler possui utilizações sociais e não deve, portanto, ser concebido como um ato neutro” (Cardoso e Cameira, 2014: 238).

A partir desta visão da leitura enquanto “atividade empiricamente observável e, mais do que isso, socialmente regulada” (Neves, 2015: 69), observa-se que esta é uma prática cujos padrões variam conforme a escolaridade, a idade, a profissão ou o sexo dos leitores (Neves, 2015; Griswold et al, 2005, 2011). O acesso a algumas infraestruturas como, por exemplo, as bibliotecas, ou à Internet define igualmente o acesso à leitura (Griswold, McDonnell e Wright, 2005: 134).

Um exemplo bastante palpável da leitura enquanto prática social é o clube de leitura. Griswold afirma que “talvez a maior expressão desta forma de literacia social seja o clube de leitura contemporâneo”[3] (Griswold, McDonnell e Wright, 2005: 134). Os clubes de leitura “constituem uma das maiores comunidades participativas do mundo das artes”[4] (Poole, 2003: 280).

Trata-se duma prática cultural estudada por autores como Wendy Griswold e outros (2005, 2011), Elizabeth Long (1992) e Janice Radway (1991). Long afirma que “a maior parte dos leitores precisa do apoio que se encontra na conversação com outros leitores, de participar num meio social onde a leitura está ‘no ar’”[5] (Long, 1992: 109).

É uma prática associada às mulheres já desde os clubes de leitura do séc. XIX, sendo que “o trabalho etnográfico em torno dos clubes de leitura se foca geralmente nas mulheres”[6] (Griswold, Lenaghan e Naffziger, 2011: 27).

Como afirma Griswold, “a Internet providencia uma infraestrutura que apoia tanto os clubes de leitura online como os presenciais” (Griswold, Lenaghan e Naffziger, 2011: 27).[7] De facto, na Internet encontramos inúmeras páginas dedicadas inteiramente à literatura. Atualmente temos, por exemplo, a rede social online (RSO) Goodreads, pertencente à Amazon; grupos de Facebook que funcionam como clubes de leitura; contas do Instagram inteiramente dedicadas ao livro (conhecidas como bookstagrams) e canais do YouTube igualmente dedicados à leitura (o denominado booktube). Há também blogues inteiramente dedicados ao livro. Aqui, os leitores trocam impressões sobre livros, procuram sugestões e pesquisam livros dentro dos seus géneros preferidos, escrevem e leem críticas literárias.

1.2.  A classe leitora e os leitores ávidos

No contexto deste estudo, revelam-se então importantes o conceito de classe leitora, tal como introduzido por Griswold, McDonell e Wright (2005), assim como o de leitores ávidos (Signorini, 2003).

O conceito de classe leitora tenta caracterizar aquelas pessoas que, dentro dum contexto social no qual a leitura desempenha um papel central e é altamente valorizada, as culturas de leitura, leem livros com frequência e em contexto de lazer (Neves, 2015; Griswold McDonell e Wright, 2005).

Ou seja, enquanto é um facto que vivemos em sociedades onde o ato de ler desempenha um papel central para muitas atividades do dia a dia, sendo o próprio prestígio duma profissão associado à quantidade de leituras que são necessárias para o seu desempenho (Neves, 2015: 70), apenas um “nicho” de pessoas encara a leitura de livros enquanto hobbie, não limitando esta prática aos contextos profissionais e escolares. Assim sendo, “apesar de uma parte mais alargada da população ser capaz de ler, a diferença fundamental será entre quem lê como parte do seu trabalho e da sua vida quotidiana e quem lê livros com regularidade” (Neves, 2015: 72).

A classe leitora é caracterizada por ser constituída “por membros altamente escolarizados e de elevado capital económico” (Cameira e Cardoso, 2014: 8). A nível profissional, em Portugal, nota-se uma prevalência de “praticantes culturais da categoria PTE – profissionais técnicos e de enquadramento” (Neves, 2015: 74), sendo que, no que toca às práticas e gostos culturais, são regra geral “omnívoros” (Neves, 2015: 74).

A classe leitora também é constituída em grande parte por utilizadores precoces e frequentes da Internet (Neves, 2015: 73) – ao contrário da televisão, a Internet não só não parece ter uma influência negativa nos hábitos de leitura dos indivíduos, como parece haver uma relação positiva (more-more) entre o uso da Internet e a leitura de livros (Griswold, McDonnell e Wright, 2005: 137).

É importante referir, contudo, que o conceito de ler com regularidade irá variar consoante a sociedade em questão – e é neste momento que nos é útil a definição de leitor ávido, tal como proposta por Signorini (2003), que chama a atenção para o facto de que “a definição do termo ‘leitor ávido’ é (…) muito variada. A diversidade de definições revela como cada país tende a atribuir uma identidade particular a esta entidade social e económica”[8], sendo um conceito que reflete “o número médio de livros lidos em cada país”[9] (Signorini, 2003).

Como se pode então definir um leitor ávido no contexto português? Estudos sobre os hábitos de leitura dos portugueses deixam algumas pistas: de acordo com Santos, Neves, Lima e Carvalho (2007: 51), excluindo os não-leitores, somente 5,4% dos portugueses que têm hábitos de leitura são considerados grandes leitores, lendo mais de 20 livros por ano. Já Signorini (2003) indica que, em Portugal, “são considerados leitores ávidos aqueles que compram mais de 11 livros por ano”[10].

Perante estes dados (e reconhecendo a diferença entre ler e comprar livros), no âmbito deste artigo são considerados leitores ávidos aqueles que leem 12 ou mais livros por ano.

2.     METODOLOGIA

Para este artigo foi adotada uma metodologia qualitativa, com recurso à entrevista semiestruturada mediada pelas RSO.

Foram entrevistadas um total de 15 pessoas, entre 13 de julho e 9 de setembro de 2020, através da plataforma Zoom, recorrendo a áudio, vídeo (de ambas as partes) e partilha de ecrã. Durante cada sessão, os entrevistados foram convidados a partilhar o ecrã do seu computador, tablet ou smartphone, percorrendo as aplicações e RSO que utilizam para criar e partilhar conteúdo, conversar, ou consultar informação sobre literatura, enquanto lhes eram colocadas questões sobre o seu percurso enquanto leitores, hábitos de leitura, modos de relação com as RSO dedicadas à leitura e, por fim, perguntas relativas à caracterização socioprofissional.

Os entrevistados foram encontrados através do método “bola de neve” (Bryman, 2004: 100). Inicialmente foram entrevistadas três pessoas, às quais foi explicado o perfil que se procurava: indivíduos ativos nas RSO e que as utilizem para consultar e/ou partilhar conteúdo sobre leitura de livros em contexto de lazer. A partir daí, e recorrendo ao método “bola de neve”, todos os entrevistados foram convidados a sugerir outros utilizadores que se encaixassem neste perfil.

É importante assinalar o contexto idiossincrático em que ocorreram as entrevistas, durante a pandemia do Covid-19, o que teve uma influência nas técnicas de entrevista adotadas – inicialmente, pretendia-se realizar entrevistas presenciais com recurso a um tablet, durante a qual o entrevistado seria convidado a entrar nas suas RSO preferidas para pronunciar-se sobre livros. Contudo, as medidas de distanciamento físico ditadas a partir de março de 2020 obrigaram a uma mudança de planos, tendo-se decidido fazer as entrevistas remotamente, recorrendo à partilha de ecrã. A situação epidemiológica também poderá ter tido alguma influência nos próprios resultados: afinal, tratava-se de uma altura durante a qual eventos presenciais eram desaconselhados pelas autoridades de saúde, pelo que o meio online se tornou o meio de eleição para partilhar e debater leituras.

A abordagem metodológica adotada é baseada no scroll back method, de Robards e Lincoln (2017; 2019), tendo sido proposto aos entrevistados que percorressem a sua timeline do Facebook ao longo da entrevista, timeline esta que assume uma dimensão autobiográfica. A metodologia usada neste trabalho tem também como referência o trabalho de Justine Gangneux (2019), que deu uso aos registos de atividade e histórico do Facebook dos participantes como estímulo à conversação durante as entrevistas, de modo a compreender “os significados que os jovens adultos atribuem às redes sociais online, o seu engajamento diário com estas plataformas, e em particular as suas perceções sobre a ‘vigilância entre pares’ (…) nestas plataformas” (Gangneux, 2019: 6)[11].

Tal como proposto por Robards e Lincoln (2017; 2019), os participantes deste estudo assumem a posição de co-investigadores, o que lhes permite a liberdade de explorar a sua própria utilização das RSO, podendo assim refletir e dar significado às suas próprias práticas e interações.

É um método que também tem a vantagem de estimular a memória dos participantes (Robards e Lincoln, 2019: 2), podendo igualmente servir para “quebrar o gelo” entre entrevistador e entrevistado (Robards e Lincoln, 2019: 3).

Outra vantagem prende-se com a privacidade e o consentimento informado: assumir o papel de co-investigadores proporciona ao entrevistado um maior grau de atividade e de escolha do que pretende partilhar (Robards e Lincoln, 2019: 3), sendo que, tanto no formulário de consentimento informado como na introdução à entrevista, foi dito aos participantes que estes poderiam eleger o que queriam, ou não, partilhar, podendo interromper e retomar a partilha de ecrã sempre que quisessem.

O guião da entrevista foi dividido em três temáticas – hábitos de leitura de livros, modos de relação com as RSO e, por fim, a caracterização socioprofissional.

3.     ANÁLISE DOS RESULTADOS

Uma vez transcritas as entrevistas, foi mobilizada uma leitura flutuante dos dados recolhidos, na qual foram realizadas anotações particulares, desembocando num exercício de sistematização, enquadrado pela moldura teórica de referência.

Como já foi mencionado, um desses pontos-chave foi a questão da leitura em grupo, amplamente mencionada pelos entrevistados, que será de seguida analisada mais ao pormenor.

3.1.  Caracterização dos entrevistados

De acordo com a caracterização socioprofissional, foi possível tipificar o conjunto dos entrevistados por sexo, idade, grau de escolaridade mais elevado concluído, escolaridade dos pais ou tutores, assim como pela tipologia ACM de operacionalização da classe social, resultante do cruzamento da variável situação na profissão com a variável profissão (Costa e Mauritti, 2018: 12).

Um dos principais pontos a destacar no grupo de entrevistados é a sua grande homogeneidade no que toca ao sexo, sendo que, dentro dum conjunto de 15 participantes, foram entrevistadas 14 mulheres e apenas 1 homem. A faixa etária dos participantes compreende-se entre os 21 e os 38 anos, sendo que a maioria está situada entre os 25 e os 30 anos.

No que toca à escolaridade, todos os participantes completaram o ensino superior – mais concretamente, 6 dos entrevistados são licenciados e 9 completaram o mestrado ou a licenciatura pré-Bolonha, havendo mais diversidade em relação à escolaridade dos pais ou tutores, que varia desde o ensino básico até ao doutoramento.

A maioria dos participantes enquadra-se nos profissionais técnicos e de enquadramento (PTE), havendo também alguns profissionais que aqui se encaixariam na categoria EDL. Dentro deste conjunto de entrevistados, apenas uma se situa na categoria dos empregados executantes.

Quanto aos seus hábitos de leitura – em particular no que toca ao número de livros lidos em contexto de lazer no último ano –, todos eles podem ser categorizados como leitores ávidos.

A homogeneidade do universo da análise pode explicar-se, em parte, pela adoção do método “bola de neve”, contudo a variedade de opiniões, reflexões, percursos e modos de uso permitiu uma relativa “diversificação interna” (Guerra, 2006: 41) dentro deste universo, sendo que apenas se começou a chegar ao ponto de saturação teórica por volta das 15 entrevistas.

É importante também notar que as características sociodemográficas deste grupo de entrevistados coincidem em muitos aspetos com as referidas por Griswold, McDonnel e Wright (2005) sobre a classe leitora, sendo que Sedo (2003) aponta no seu estudo sobre clubes de leitura virtuais que as características dos membros destes clubes “coincidem regra geral com os critérios demográficos sobre os leitores tal como delineados por Griswold, McDonnel e Wright (2005)”[12] (Sedo, 2003: 72).

3.2.  Clubes de leitura – do presencial ao online

Wendy Griswold, McDonnell e Wright afirmam que “as pessoas leem em grupos, e mesmo a leitura individual resulta da pertença a coletivos”[13] (2005: 132).

Este estudo aborda a leitura em grupo neste contexto mais generalizado, ou seja, a leitura em grupo enquanto fenómeno que vai além do clube de leitura presencial, que  tem lugar sempre que existe uma troca de impressões, uma busca de sugestões de leitura, um sentido comunitário em torno do livro que, segundo os entrevistados, existe tanto no clube do livro como na secção de comentários de um blogue ou página do Instagram sobre leitura.

Sara, por exemplo, utiliza várias aplicações para falar sobre livros:

Tenho um grupo de amigas no WhatsApp (…) acho que somos 5. E nós partilhamos muito o que andamos a ler, porque antigamente fazíamos parte dum clube de leitura, mas, entretanto, como tivemos alguns dissabores com a dona da livraria, deixámos de lá ir, mas fazíamos parte de um grupo, então às vezes temos sugestões de coisas para ler, e vamos apontando. Ou então (…) pessoal que conversa comigo nas redes sociais, por exemplo, tenho um chat do Discord, temos mesmo lá um canal que é clube de leitura, e às vezes o pessoal vai sugerindo coisas, e eu vou apontando. (…) Nós (…) os habituais, somos cerca de 20 (…). Por exemplo, há pessoal que estuda, sei lá, história da arte, ou pessoal que está muito no universo da fantasia e que vai sugerindo coisas, há pessoas que gostam mais de romance, ou literatura Inglesa do séc. XIX (…), e vão pondo.
[Sara, 29 anos, assistente editorial]

Já Telma criou um grupo de leitura virtual:

(…) eu criei uma coisa chamada “Uma Dúzia de Livros”, e é uma espécie de clube do livro e de desafio de leitura (…) e basicamente o que tens é, em vez de ser um livro por mês e toda a gente lê o mesmo livro, tens um tema por mês, e cada pessoa escolhe um livro dentro desse tema.
[Telma, 29 anos, gestora de redes sociais]

O clube de leitura presencial também tem uma presença significativa, sendo que, por exemplo, Luísa fundou o seu próprio grupo, um clube que conta também com um grupo do WhatsApp onde os membros conversam frequentemente sobre livros.

Temos também o exemplo de Filipa, que já passou por vários clubes de leitura presenciais:

O primeiro clube de leitura a que eu fui foi o da Sónia Morais Santos, autora do blog “Cocó na Fralda” (…) a partir daí comecei a notar mais à minha volta que havia outros clubes. Houve uma altura, em 2018 ou 2019, em que cheguei a ir a quatro clubes de leitura. (…) Aqueles a que eu cheguei a ir eram físicos, entretanto adaptaram-se (…) e acho que migraram todos facilmente para o online.
[Filipa, 25 anos, professora de português como língua estrangeira e formadora de escrita e comunicação]

O clube de leitura assume também um importante papel de sociabilidade – um papel já estudado por autoras como Radway (1991). Mónica, por exemplo, comentou o seguinte:

Em [...] 2015 abriu a Confraria Vermelha, a Livraria de Mulheres, em que se formou um clube de leitura, foi o meu primeiro clube de leitura, e a partir daí não só fiz amigas relacionadas com livros, mas houve muitos livros que eu nunca na vida conheceria. Estas autoras – e são autoras muitas vezes africanas, brasileiras, asiáticas (…) e mesmo portugueses (…) eu não lia muita literatura portuguesa, e a Confraria Vermelha abriu-me muito a isso. (…) Além disso, quando me mudei para o UK, uma das formas que encontrei para fazer amigos foi em clubes de leitura. (…) Eu quase que digo que a maior parte dos meus amigos – e é engraçado que a leitura é um hobbie que se liga muito a introvertidos – [...] para aí 50% dos meus amigos vieram de alguma forma através de livros. Seja em clubes de leitura, seja na Universidade. (…)
[Mónica, 30 anos, analista de dados] 

E Inês refere: 

Depois de ter o canal, depois de ter o blog, é que comecei a sentir uma ligação [a outros leitores]. Antes da Internet sentia-me um bocadinho ‘a estranha’, porque gostava de ler e gostava de ler fantasia. Eu durante anos achei que era a única pessoa que lia fantasia. E quando descobri o [blog] Estante de Livros aquilo era um mundo, porque havia muita gente no fórum que adorava fantasia.
[Inês, 38 anos, técnica de planeamento na área da construção] 

Esta partilha de significados, interpretações e ideias sobre o livro não se limita, no entanto, às modalidades mencionadas acima, as quais, desde o chat até aos encontros do clube do livro, constituem sobretudo “rodas de conversa” sobre a leitura.

Os participantes deste estudo são na sua maioria membros altamente participativos das suas comunidades online: não só consomem conteúdo como também o criam. São autores de blogues de leitura e de contas no Instagram sobre livros, gerem comunidades online, participam e criam podcasts dedicados inteiramente ao livro e têm o seu próprio canal do YouTube também sobre a temática. Estas utilizações frequentemente sobrepõem-se, sendo que os participantes usam quase todos mais do que uma RSO para falar sobre leitura.

Temos, por exemplo, Filipa, que tem um blogue de leitura, uma conta de Instagram onde partilha as suas leituras atuais, e que também regista as suas leituras e escreve críticas no Goodreads. Ou Inês, também utilizadora do Goodreads, que escreve igualmente críticas no seu blogue e canal do YouTube. 

Os debates presentes nas RSO influenciam nitidamente as escolhas de leitura dos participantes. As sugestões das editoras, os livros debatidos nos clubes de leitura ou mencionados em podcasts, ou partilhados no Whatsapp ou no Discord, têm um peso bastante relevante nesta escolha, como foi referido pelas entrevistadas Mónica e Susana.

Há livros que eu não conhecia se não visse muita gente a lê-los, ou se não se falasse deles. Sem dúvida, eu acho que as redes sociais são aquilo que nós fazemos delas, e não o contrário. Sem dúvida as redes sociais impactam.
[Mónica, 30 anos, analista de dados] 

[A autora do] Estante de Livros, basicamente, fazia parte do grupo de bloggers com quem eu me dava e, ainda hoje em dia, eu sei que em termos de opinião de livros, se usarmos o sistema de classificação de cinco estrelas, eu vario uma estrela em relação a ela. Portanto, quando quero comprar livros de que tenho a certeza que vou gostar, vou às cinco estrelas dela e compro-os.
[Susana, 32 anos, gestora de conteúdo numa loja online]

Durante o curso das entrevistas, no verão de 2020, a questão do racismo e o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos dominavam a esfera pública, e foi um tema recorrentemente mencionado:

 

Tenho ultimamente tentado uma coisa que tenho visto muito em contas dos Estados Unidos, que é: eles incentivam a leitura de livros por autores de cor (…), e a olhar para as nossas estantes e fazer aquele exercício de perceber quantos livros eu tenho só escritos por mulheres, por homens, por pessoas de cor, leitura LGBT. Tenho feito mais esse exercício ultimamente, e mudado os meus hábitos de leitura.
[Eva, 27 anos, médica veterinária] 

Mostrando-te as páginas [de Instagram] de alguns clubes de leitura internacionais que eu consulto (…) Uma coisa que notei muito nos clubes de leitura é que todos eles estiveram muito em cima do Black Lives Matter, todos eles falaram sobre isso, todos eles entrevistaram escritores africanos, escritores americanos…foi mesmo muito interessante perceber como isto se tornou um acontecimento mediático também para os clubes de leitura, e fez com que nas redes sociais partilhassem mais literatura africana, mais literatura americana, mais autores negros, e isto é mesmo muito giro.
[Luísa, 32 anos, redatora publicitária]

Isto não só demonstra o interesse pela atualidade – a classe leitora é também consumidora de notícias (Neves, 2015: 72) –, mas vem também novamente desafiar a “ideologia do leitor solitário” que Elizabeth Long (1992) critica.

É igualmente de destacar a presença das editoras, tanto nos clubes de leitura como através de parcerias com os utilizadores mais ativos e com mais seguidores. É, aliás, um aspeto importante, levando mesmo a algumas críticas por parte dos entrevistados, como é o caso de Inês:

Infelizmente é uma coisa que eu vejo, não só com os blogues, mas também com o BookTube e com o Instagram (…) a sensação que me dá é que há muita gente que cria para receber livros das editoras (…) não deve ser esse o principal objetivo. Não digo que com o tempo não possam conseguir, eu também recebo livros de editoras (…) mas noto que as pessoas criam e, passados 2 ou 3 meses, a sensação que dá é que a pessoa criou só para receber. E a sensação que dá é que só leem o que receberam. (…) Porque isso também se nota ao longo do tempo, porque são pessoas que criam e depois desistem. A pessoa deve criar por causa disso, porque tem gosto em partilhar.
[Inês, 38 anos, técnica de planeamento na área da construção]

Mesmo quando a leitura é feita a sós – e frequentemente o é, pelo menos no que toca aos participantes deste estudo, a Internet, os círculos de amigos, os clubes de leitura e a crítica literária, seja esta produzida pelos media ou pelos próprios leitores, numa lógica de produsage (Toffler, 1980), têm uma nítida influência nos hábitos de leitura.

CONCLUSÃO

A partir dos dados recolhidos num estudo sobre a forma como os leitores ávidos utilizam as RSO enquanto ferramenta para a leitura, este artigo focou-se naquele que acabou por ser um dos aspetos mais relevantes: a leitura enquanto prática social mediada pelo online.

Esta dimensão social da leitura revelou-se não só nos processos de socialização dos entrevistados – afinal, todos eles têm características sociodemográficas próximas às apontadas por Griswold, McDonnel e Wright (2005), e por Griswold, Lenaghan e Naffziger (2011), sobre a classe leitora –, mas também na forma como utilizam tanto os clubes de leitura presenciais como a Internet enquanto ferramenta para partilhar ideias, sugerir livros e procurar novas leituras. E, tal como com a classe leitora, todos os participantes deste estudo são leitores ávidos, lendo mais de 12 livros por ano.

Observa-se também um paralelismo entre este universo da análise e aquilo que Radway constatou sobre os clubes de leitura presenciais, que são constituídos maioritariamente por mulheres de classe média, com uma forte presença das editoras e uma igualmente relevante componente de sociabilidade.

A articulação entre editoras e clubes de leitura, como foi referido, é observada desde antes da expansão do clube de leitura para a Internet (Radway, 1991). As editoras parecem encontrar na Internet e no cariz altamente participativo do uso das RSO por parte deste universo da análise uma oportunidade de divulgação do seu trabalho.

Este artigo pretende deixar algumas pistas para estudos futuros sobre a leitura enquanto prática social, propondo que esta, sobretudo através da Internet, assume contornos multifacetados que vão muito além do clube de leitura “tradicional”, o qual, no entanto, não parece ter perdido relevância, sendo a Internet mais uma ferramenta para a sua proliferação e não um substituto.

REFERÊNCIAS

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Toffler, A. (1980). The Third Wave. William Morrow and Company.

NOTAS

[1] Este artigo retoma parcialmente a dissertação de mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação intitulada Leitura e internet: o uso das redes sociais online pelos leitores (Duarte, 2020).

[2] Tradução livre de “ideology of the solitary reader” (Long, 1992).

[3] Tradução livre de “Perhaps the ultimate expression of this form of social literacy is the contemporary book club or reading group” (Griswold et al, 2005).

[4] Tradução livre de “constitute one of the largest bodies of community participation in the arts” (Poole, 2003).

[5] Tradução livre de “Most readers need the support of talk with other readers, the participation in a social milieu in which books are ‘in the air’” (Long, 1992).

[6] Tradução livre de “ethnographic work on book clubs generally focuses on groups of women readers”. (Griswold, McDonnell e Wright, 2011).

[7] Tradução livre de “The internet provides an infrastructure to support both online and face to face reading groups” (Griswold et al., 2011).

[8] Tradução livre de “the definition of the term keen reader is also very varied. This variety of definitions reveals how each nation tends to attribute a particular identity to this social and economic figure in the context of the hierarchies of importance of the entire set of readers” (Signorini, 2003).

[9] Tradução livre de “the average number of books read in each nation” (Signorini, 2003).

[10] Tradução livre de “Keen readers were judged to be those buying more than 11 books a year” (Signorini, 2003).

[11] Tradução livre de “the meanings that young adults ascribed to social media, their everyday engagement with the platforms and in particular their perceptions of peer monitoring and profile checking practices on these platforms” (Gangneux, 2019).

[12] Tradução livre de “generally match the demographic criteria of readers outlined by Griswold, McDonnell e Wright” (Sedo, 2003).

[13] Tradução livre de “People read in groups, and even individual reading is the result of collective memberships” (Griswold et al, 2005).

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