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TRADUÇÃO
Conhecimento lexical e tradução de palavras
Lexical knowledge and word translation
Alina Villalva

RESUMO

O conhecimento lexical não diz só respeito à forma e ao significado das palavras. Inclui o conhecimento das suas propriedades gramaticais, como o género dos substantivos (carpete, por exemplo, é um substantivo feminino e tapete é masculino), de questões pragmáticas, como a adequação ao registo discursivo (aborrecido é um adjetivo mais formal do que chateado) e até de informações idiossincráticas, como a ortografia, para os falantes alfabetizados.

Um dos tipos de informação que o conhecimento lexical pode também incluir diz respeito aos equivalentes das palavras em línguas diferentes. Para um falante do português, é possível que, por exemplo, o conhecimento da palavra homem inclua o equivalente inglês man, o francês homme, o italiano uomo, ou o castelhano hombre, se falar também estas línguas. No entanto, esta associação entre palavras de línguas diferentes não é sempre fácil de estabelecer. Palavras como nortear ou desnortear, por exemplo, não têm equivalentes óbvios em inglês. E a tradução de colocações, como às tantas, que não podem ser traduzidas palavra a palavra, também é problemática.

Para resolver problemas na tradução de palavras, é interessante pesquisar a sua história, considerando informação etimológica e a sua evolução semântica, tal como documentada em textos escritos em diversos momentos do eixo temporal e também nos dicionários que acompanham o léxico do português a partir do século 16.

Este texto apresentará alguns exemplos que ilustram problemas de tradução de palavras e o que pode ser feito para os resolver.

ABSTRACT

Lexical knowledge is not only about the form and the meaning of words. It includes knowledge of their grammatical properties, such as the gender of nouns (carpete ‘carpet’, for example, is a feminine noun and tapete ‘floormat’ is masculine), pragmatic issues such as discourse adequacy (the adjective aborrecido ‘bored’ is more formal than chateado ‘upset’) and even idiosyncratic information such as the spelling for literate speakers.

A type of information that lexical knowledge may also comprise concerns the equivalents of words in different languages. For a native Portuguese speaker, it is possible that, for instance, the knowledge of the word homem will include the English equivalent man, the French homme, the Italian uomo, or the Castilian hombre, if he or she also speaks these languages. However, the association between words from different languages is not always easy to establish. Words such as nortear or desnortear, for instance, have no obvious equivalents in English. And the translation of collocations, which cannot be translated word by word, like às tantas, is also problematic.

To solve word translation problems, it is interesting to consider their history, including etymological information and their semantic evolution, as documented in texts written at various moments of the temporal axis, and in the dictionaries that accompany the lexicon of Portuguese from the 16th century onwards.

This text will present some examples that illustrate word translation problems and what can be done to solve them.

PALAVRAS-CHAVE

conhecimento lexical, histórias de palavras, tradução de palavras

KEYWORDS

lexical knowledge, history of words, word translation

NOTA CURRICULAR

Alina Villalva é doutora em Linguística, com especialização em morfologia e léxico. É professora e investigadora na Universidade de Lisboa (Faculdade de Letras e Centro de Linguística), e fundou um laboratório virtual (The Word Lab), que promove a investigação experimental no domínio do processamento de palavras.

Tem participado em diversos projetos de investigação, tanto em Portugal quanto noutros países. É autora de diversos livros, como Estruturas Morfológicas. Unidades e Hierarquias nas Palavras do Português e Introdução ao Estudo do Léxico. Descrição e Análise do Português, e de vários artigos publicados em múltiplos suportes.

Introdução

Conhecer uma palavra implica conhecer a sua realização fonética e o seu significado, mas não só. A esse conhecimento soma-se intrinsecamente o das propriedades gramaticais, como, por exemplo, o género nominal, e, mais circunstancialmente, o conhecimento de traços pragmáticos, como os que dizem respeito ao registo discursivo e conhecimento do mundo, ou o conhecimento de traços idiossincráticos das palavras, como a sua ortografia ou a equivalência entre palavras ou expressões de línguas distintas. A primeira parte deste texto é dedicada à discussão desta questão.

A segunda parte foca-se em problemas de tradução de palavras ou outras unidades lexicais. Muitos destes problemas exigem o reconhecimento de que a tradução de palavras não encontra obrigatoriamente, na língua de destino, um equivalente estrito, problema que pode exigir ao tradutor a capacidade de procurar, na língua de partida, uma alternativa que facilite a transferência. A tradução exige, pois, um sólido conhecimento do léxico das línguas envolvidas, mas também, com frequência, a capacidade de proceder a uma primeira ‘tradução’ dentro da língua de partida, para depois conseguir transpô-la para a língua de destino.

A última parte deste texto baseia-se no estudo de um caso, a tradução da palavra hill do inglês para o português, para mostrar que as ferramentas ao dispor dos tradutores, formais ou informais, são, particularmente no que diz respeito ao português, muito frágeis e muito precisadas de atenção especializada. Num tempo em que as humanidades digitais se deixam seduzir pela sofisticação tecnológica, que é em si própria um bem, não pode negligenciar-se o conhecimento especializado produzido pela investigação dedicada.

1. Conhecer uma palavra

Conhecer uma palavra implica mais do que saber como se pronuncia e o que significa. Na história da linguística moderna, a introdução do conceito saussuriano de signo linguístico[1] marcou um importante ponto de viragem no domínio dos estudos sobre palavras, mas os últimos cem anos trouxeram muitos outros desenvolvimentos importantes. Assim, pode, hoje em dia, afirmar-se que o conhecimento das palavras, para além da realização fonética e do significado, inclui também o conhecimento das suas propriedades gramaticais. Um exemplo, no que diz respeito ao português, é o do género dos substantivos. Os falantes nativos do português sabem, por exemplo, que carpete é um substantivo feminino e tapete é um substantivo masculino porque essa é uma propriedade inerente de cada uma dessas palavras, que é adquirida intrinsecamente com a aprendizagem da palavra. Não há, nem na forma nem no significado de carpete ou tapete, maneira de descobrir que valor de género poderão ter: as palavras de tema -e, como carpete e tapete, distribuem-se pelos dois valores de género[2] ou podem mesmo ser subespecificadas quanto ao género[3], consequentemente, o valor de género é tão arbitrário quanto a realização fonética. O valor de género dos substantivos requer, pois, uma aprendizagem específica, e da qual depende, por exemplo, a fixação do valor de género do adjetivo modificador que ocorre em sequências como carpete velha ou tapete novo, rejeitando, por violação do princípio de concordância, *carpete velho ou *tapete nova. O valor de género é tão aleatório e idiossincrático, que permite que a variedade brasileira do português defina carpete como um substantivo masculino, sem que o significado sofra alteração significativa, e ainda que falantes não-nativos do português europeu possam experimentar qualquer um dos valores de género com qualquer uma das palavras, indiferenciadamente (e.g., *o carpete, *a tapete), até ao momento em que adicionam esse conhecimento a cada uma das palavras.

Um outro tipo de conhecimento associado às palavras diz respeito a questões de natureza pragmática, como a adequação ao registo discursivo. Numa interação verbal, o grau de formalidade resulta de uma escolha dos interlocutores, ou de uma dada imposição por uma das partes. Tomada essa decisão, cabe aos interlocutores adequar a sua produção verbal às circunstâncias específicas. A adequação não diz apenas respeito à escolha das palavras, mas também se joga nesse tabuleiro. Assim, usar uma palavra como chateado num contexto formal pode ser considerado inadequado pelo interlocutor, que talvez prefira aborrecido, em alternativa. O desconhecimento do grau de adequação discursiva das palavras pode justificar usos menos consensuais, mas o que aqui importa salientar é que essa adequação depende de um conhecimento que foi, ou não, adquirido pelo locutor, tipicamente durante o percurso escolar, que é o lugar para aprender a ser falante do registo formal da língua materna.

Outra questão de natureza pragmática diz respeito ao conhecimento do mundo que os falantes possuem. Até março de 2020, a palavra pandemia teria muito provavelmente uma frequência de uso muito baixa e nenhum traço particular associado. A partir dessa data, pandemia adquiriu um estatuto particular, com uma frequência de uso significativamente maior, e a capacidade de evocação imediata da pandemia desencadeada pela presença do vírus corona, na versão de 2019. A pesquisa no Google Trends[4] (cf. Figura 1) mostra bem o pico que, entre o início de 2019 e o início de 2022, as duas palavras (pandemia e vírus) registaram, no início de 2020.

Figura 1- Evolução do número de pesquisas de pandemia e vírus 

Fonte: trends.google.com

A ortografia é outro dos domínios do conhecimento das palavras. O estatuto do registo escrito das palavras não é idêntico ao das suas propriedades gramaticais. Um falante nativo do português que conheça a palavra tapete sabe o que ela significa, sabe a que classe(s) gramatical(is) pertence e conhece o seu valor de género, embora não necessariamente de forma explícita. Esses conhecimentos permitem-lhe usar a palavra num contexto como comprei um tapete castanho, mas não permitem deduzir como se escreve a palavra. A ortografia, que impende sobre palavras e não sobre outras unidades como as sílabas ou as frases, requer a intervenção de um processo de aprendizagem da convenção ortográfica, que é independente do processo de aquisição e desenvolvimento linguístico. Finalmente, um outro domínio do conhecimento lexical diz respeito à equivalência entre palavras da língua materna e palavras de outras línguas. Para um falante do português, é possível que o conhecimento da palavra homem inclua o equivalente inglês man, o francês homme, o italiano uomo, ou o castelhano hombre, dependendo do seu conhecimento de cada uma dessas línguas. E é até possível conhecer o equivalente de uma palavra da língua nativa numa outra língua sem ser falante dessa outra língua, correspondendo esse conhecimento a um traço da palavra no léxico nativo. É o que se verifica, por exemplo, quando se sabe que adeus equivale a sayonara, em japonês, ou a ciao, em italiano, podendo até alguns destes equivalentes ser tomados por empréstimo, como sucede no último caso, que é graficamente convertido em chau, no português europeu, e tchau, no português brasileiro, passando a fazer parte do léxico do português.

2. Problemas de tradução

A associação entre palavras de línguas diferentes não é, no entanto, sempre fácil de estabelecer. Veja-se, por exemplo, a dificuldade de tradução, para o inglês, de palavras como nortear e desnortear. A documentação disponível sugere que a mais antiga forma derivada de norte é anortear, e que a sua primeira atestação ocorre no Diccionario Geral da Lingoa Portugueza de Algibeira, publicado entre 1818 e 1821. A definição (não muito esclarecedora) de ‘inclinar para o Norte’ e a menção de que a palavra é antiga dá duas indicações: por um lado, embora não tenham ficado registos, intui-se que a palavra terá estado em uso bem antes do início do século 19; e, por outro, que se terá tornado desusada, a ponto de não subsistir qualquer memória do seu uso na atual contemporaneidade do português. Segue-se, em 1836, a atestação da palavra desnortear, no Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza de Francisco Solano. O conteúdo desta entrada merece ser aqui reproduzido:

desnortear

'fazer perder o rumo indicado pela agulha de marear que aponta o norte'

Esta definição é mais esclarecedora, remetendo o conceito de desnortear para o domínio da navegação, e ajuda a compreender melhor a razão pela qual a tradução para outras línguas pode ser idêntica à de desorientar, um derivado de oriente (que ocorre em francês, como désorienter, ou em italiano, como disorientare), ou de desviar, um derivado de via (atestado em francês como dévier, em italiano como deviare). Entender-se-á melhor estas circunstâncias recordando que a navegação no mar Mediterrâneo se processa, predominantemente, entre o ocidente e o oriente, sendo o ponto relacionado com o nascer do sol (a oriente) uma referência essencial. Assim sendo, o conceito apropriado para referir a boa direção da navegação é o de orientar. Desorientar refere o seu oposto, ou seja, perder a boa direção. Já a navegação atlântica, inaugurada pelos marinheiros portugueses, justificava outra referência, tendo sido escolhida a estrela do norte. Norte é, de facto, o ponto cardeal que deu origem ao já referido verbo anortear (depois substituído por nortear) e também a desnortear. Há, nestes dois exemplos, a evidência do encontro entre o conhecimento dos dados históricos e da história das palavras. A tradução destas palavras requer acesso a, pelo menos, parte desta informação, de modo a perceber em que medida os pares orientar / nortear e desorientar / desnortear são equivalentes em português. Nos dicionários da Infopédia, as traduções português-inglês deste último par são absolutamente idênticas, mas as definições monolingues, independentemente da forma como veiculam as aceções semânticas das duas palavras, não são exatamente simétricas. E a tradução inglês-português só faz referência a desorientar e a uma outra aceção (i.e., confundir), que não surge no dicionário monolingue (cf. Figura 2).

 

Figura 2 – desorientar e desnortear nos dicionários Infopédia

Para a tradução, são igualmente desafiantes as chamadas colocações e expressões idiomáticas, que são sequências frásicas cujo significado se afasta da combinação dos significados das formas que as integram. Uma tradução bem-sucedida requer a identificação dessas expressões lexicalizadas, o conhecimento do seu valor semântico e a capacidade de encontrar uma palavra ou uma expressão equivalente na língua-alvo. A expressão às tantas, por exemplo, combina uma preposição (a) com um substantivo formado a partir de um quantificador indefinido, na forma feminina plural (tantas), precedido pelo determinante artigo definido feminino plural (as). Estranha expressão esta, que, ainda para mais, surge com diferentes valores semânticos, em frases como as seguintes (a tradução para inglês é registada entre parêntesis):

  •  Às tantas, comecei a confundir-me com as personagens destes livros.[5]

(às tantas = suddenly)

  • Acreditam que as melhores decisões são tomadas às tantas da madrugada.[6]

(às tantas = very late)

  • A Inspecção-Geral de Saúde [...] envia-nos sempre, com antecedência, um ofício a avisar que no dia tal, às tantas horas, a pessoa tal inspecionará as nossas instalações.[7]

(às tantas horas = at such and such a time)

À dificuldade de interpretação destas expressões adverbiais, soma-se ainda o uso literal, exemplificado pela seguinte frase:

  • Vivemos tempos sem precedentes e é normal e natural estarmos com várias dificuldades, face às tantas mudanças e necessidade de adaptação.[8]

(às tantas = of so many)

A resolução deste tipo de problemas de tradução só pode ser garantida pelo trabalho de tradutores competentes, mas as circunstâncias do mundo contemporâneo não garantem o acesso sistemático a tradutores profissionais proficientes. Tomemos o caso do inglês usado por professores e estudantes universitários com aulas nessa língua, ou de técnicos de várias áreas (informática, economia, medicina, etc.) que interagem frequentemente com falantes das mais diversas línguas, ou até apenas entre si, por intermédio dessa língua de comunicação. Ainda que, nestes casos, o recurso a tradutores não seja habitual, é possível e desejável o recurso a ferramentas que permitam ajudar a fazer boas escolhas na tradução de palavras e pequenas sequências de palavras que formem unidades semânticas. São vários os recursos já disponíveis, como auxiliares de tradução (cf. Deepl[9]); traduções alinhadas (cf. Linguee[10]); ou dicionários online (cf. Infopédia[11]), mas o avanço tecnológico não tem sido acompanhado por idêntico progresso no conhecimento do léxico, uma área de estudos que a linguística contemporânea tem negligenciado e a voracidade do ritmo da vida moderna não acomoda facilmente. Estudar palavras é um trabalho árduo e demorado, de busca de pistas na diacronia da língua, de relacionamento de fragmentos dispersos pela produção textual de que se guardou memória (dado que o registo da oralidade é recente e ainda escassamente considerado), de construção de descrições coerentes e acessíveis tanto a especialistas quanto ao senso-comum dos falantes do português que fazem a sua força. Neste domínio, muito está por fazer para que o mundo novo das humanidades digitais possa conter em si os conteúdos que as humanidades não podiam produzir sem tecnologia e que são mais do que meros artifícios tecnológicos.

Outro caminho é o de mostrar como se pode fazer uma investigação pessoal casuística. O caso seguinte pode servir de exemplo.

3. A tradução de hill [12]

O caso de estudo que se centra na tradução de hill é motivado pelo facto de se tratar de uma palavra aparentemente fácil de traduzir. Digo aparentemente, porque a consulta de um dicionário inglês-português, como o da Infopédia, por exemplo, não apresenta apenas uma hipótese de tradução, mas várias e agrupadas em dois itens (cf. Figura 3).

Figura 3 – Infopédia, s.v. hill

Como, para um falante nativo do português, estas várias hipóteses de tradução não parecem ser intercambiáveis, nem parecem suscitar idêntica aceitabilidade, esperar-se-ia que este dicionário indicasse os contextos adequados ao uso de cada uma das hipóteses de tradução apresentadas. Tal não se verifica. Assim sendo, é aconselhável procurar outras fontes de informação. No Linguee (cf. Figura 4), encontram-se três equivalentes principais (um dos quais, montanha, que não está contemplado na Infopédia) e cinco outros, caracterizados como menos frequentes e que também incluem algumas novidades (cf. morro, cerro, elevação). Por outro lado, ladeira, que surge na Infopédia, não está presente no Linguee.

 

Figura 4- Linguee, s.v. hill

Há, portanto, discrepâncias entre os dois dicionários considerados, mas a razão para considerar o Linguee relaciona-se com a disponibilização de traduções alinhadas. No caso de hill, verifica-se que os exemplos de uso se afastam um pouco do que o próprio dicionário contempla: a tradução mais frequente converte hill em colina e colina em hill[13]; segue-se monte[14]; depois morro[15]; e, por último, montanha[16], embora, neste caso, não haja exemplos de tradução de montanha para hill. A tradução de hill como cerro, elevação, encosta, ladeira ou outeiro não encontra qualquer exemplo.

Por outro lado, se o foco for posto nas formas do português, colina, para além de hill, encontra alguns outros equivalentes em inglês, nomeadamente mountain[17], ridge[18] e hillside[19]; monte pode ter mountain[20] como equivalente, sendo frequentemente transposto para mount, no caso de topónimos[21]; quanto a morro, encontram-se traduções com mountain[22] e com hillside[23].

Este panorama geral é bastante preocupante. Parece haver contextos que justificam a escolha de diferentes equivalentes (cf. a stray lamb climbed the hill -> um cordeiro desgarrado subiu o monte vs. the hill was occupied by 100 police officers -> a ocupação do morro aconteceu com 100 policiais), mas também há contextos similares que surpreendentemente não são traduzidos de forma idêntica (cf. this natural hill had been enlarged -> essa colina natural fora ampliada e a city that is set on a hill cannot be hidden -> não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte). Será a tradução de hill aleatória, dadas as possibilidades sugeridas nos dois dicionários, ou haverá fatores condicionantes que não são explicitados? E por que razão os dicionários apresentam possibilidades de tradução que os dados não sancionam? A resolução destes problemas encontra-se na investigação lexicológica, nomeadamente com um melhor conhecimento das palavras em questão na sua dimensão monolingue, sincrónica e diacrónica, para o que se torna indispensável consultar os dicionários relevantes e os corpora textuais disponíveis.

Começando pela forma hill, deve antes de mais considerar-se a definição constante no Oxford English Dictionary (1961):

A natural elevation of the earth’s surface rising more or less steeply above the level of the surrounding land. Formerly the general term, including what are now called mountains; after the introduction of the latter word, gradually restricted to heights of less elevation; but the discrimination is largely a matter of local usage, and of the more or less mountainous character of the district, heights which in one locality are called mountains being in another reckoned merely as hills. A more rounded and less rugged outline is also usually connoted by the name.[24]

Esta definição dá duas informações interessantes: a primeira diz respeito ao facto de hill ter sofrido uma alteração semântica com a introdução de mountain no léxico do inglês, tendo o primeiro termo ficado reservado para elevações de terreno de menor dimensão e o segundo, para elevações de maior dimensão. Mas também fica o aviso de que a distribuição destas palavras está intimamente relacionada com as características orográficas do território de implantação e com usos locais.

Idêntica definição surge no Webster (2018)[25]. No dicionário Cambridge, a primeira definição é ainda mais neutra do que as anteriores[26] e a segunda introduz uma novidade, dado que hill admite como definição referir parte de uma elevação do terreno[27], uma encosta ou ladeira (aceção que, curiosamente, surge no dicionário bilingue da Infopédia). Estas caracterizações lexicográficas de hill não esclarecem as diferentes traduções para o português, mas sugerem que os dados históricos podem ser relevantes.

Passemos, então, à análise dos principais dicionários bilingues Inglês - Português, desde o primeiro, publicado no início do século 18, até aos mais recentes, análise que mostra bastantes oscilações de tradução (cf. Figura 5).

Figura 5 - Tradução de hill: Cronologia dos dicionários Inglês - Português

Esta análise mostra que monte é a única tradução que está presente no primeiro dicionário, reaparecendo como primeira escolha apenas em dois dicionários do final do século 19. Outeiro é o primeiro ou segundo equivalente, em muitos dicionários, mas só até finais do século 19. Colina surge, pela primeira vez, num dicionário de 1875 e torna-se o primeiro equivalente nos dicionários do século 20, compilados em Portugal. E, por último, morro, que surge apenas no século 20, torna-se dominante nos dicionários de origem brasileira.

A comparação destes dados com os dados lexicográficos monolingues[28] e com os dados do uso[29] confirma as tendências que aí se verificam.

Monte (que tem origem na forma latina mons, montis) mantém o valor semântico latino (‘elevação de terra’) relativamente estável, desde as primeiras atestações conhecidas, no século 13. Monte está dicionarizado desde o século 16, assistindo-se a diversos exercícios de relação semântica (monte é igual a cúmulo e outeiro, maior do que penedia e menor do que montanha) e surge como equivalente de morro no dicionário brasileiro Houaiss (cf. Tabela 1).

 Cardoso (1562-70)

 mons(tis) = monticulus (i). Ho monte.

 Barbosa (1611)

 mons, montis = cousa de monte. Montanus, a, um.

 Pereira (1697)

 mons, ontis = monte, id est cumulo [...] dim. O pequeno monte, outeirinho.

 Bluteau (1712-28)

 monte = terra, ou penedia muito mais alta, que o nivel ordinario da terra.

 Morais (1813)

 monte = porção, ou parte da terra, notavelmente levantada do olivel da outra que a rodeia.

 Figueiredo (1913)

 monte = grande massa de terra e de rocha, elevada acima do terreno que a rodeia.

 Morais (1949-58)

 monte = terreno acima do solo que o rodeia

 Houaiss (2001)

 monte = parte de uma superfície que se eleva em relação ao espaço circundante; morro

 Infopédia (2018)

 monte = elevação de terreno acima do solo circunjacente, menos extensa e menos alta do   que a montanha

Tabela 1 - monte

 

A forma outeiro (proveniente do substantivo latino altarium, que é um derivado de altus) está atestado desde o século 13, com o significado estável de 'elevação natural'. É sobretudo usado em contextos religiosos (o que também se verifica com um outro derivado da mesma base, que é altar) e na toponímia, talvez relacionada com uma especialização do significado, documentada em Morais (1831). Aí é feita uma associação de outeiro ao ‘alto do monte’, onde frequentemente se encontram ermidas que são destino de procissões e festejos religiosos. Nos registos lexicográficos, outeiro está presente desde o século 16, com a novidade de alguns dicionários antigos referirem a forma latina collis (que está relacionada com colina) e Bluteau mencionar uma possibilidade de substituição de outeiro por colina (cf. Tabela 2).

 Cardoso (1562-70)

 collis = ho outeyro

 Barbosa (1611)

 outeyro = Collis, [...] Outeyrinho. Colliculus [...]. 1. Cousa de outeyro. Collinus [...] Collina vinea

 Bluteau (1712-28)

 outeiro = Lombo de terra, que se levanta da planicie, & faz hum alto donde se descobre   campo. [...] Collis [...] O Conde da Ericeyra, em varios lugares do seu Portugal Restaurado,   diz Collina, em lugar de Outeyro. Vid. Collina.

 Morais (1813)

 o alto do monte, os altos ou outeiros

 Figueiredo (1913)

 oiteiro = pequeno monte [...] colina

 Morais (1949-58)

 outeiro = pequena elevação de terra firme, pequeno monte, colina

 Houaiss (2001)

 outeiro = pequena elevação de terreno, colina, monte

 Infopédia (2018)

 outeiro = pequena elevação de terreno, oiteiro

Tabela 2 - outeiro

 

Quanto a colina (proveniente de um adjetivo derivado do substantivo latino collis 'elevação de terra'), é curiosa a ocorrência da forma feminina porque talvez ela dê visibilidade à relação da palavra do português com o nome de uma das entradas da Roma antiga, a Porta Collina. É possível que a introdução desta forma se deva ao Frei Nicolau de Oliveira, autor do Livro das Grandezas de Lisboa, publicado em 1620. Este autor refere "as sete colinas sobre as quais estava assente Lisboa", numa referência à alegada semelhança entre a topografia de Roma e a de Lisboa, identificada pelos conquistadores romanos. A hipótese do Frei Nicolau de Oliveira pode ser contestada, mas a novidade lexical persistiu, embora curiosamente não tenha alcançado o Brasil. As primeiras referências lexicográficas a colina referem apenas a toponímia clássica e um dos seus traços dominantes, que está relacionado com a existência de uma vinha num local elevado. A partir do século 19, tanto os dicionários quanto os registos de uso consagram a introdução de colina como mais uma das designações para ‘elevação da terra’ (cf. Tabela 3).

 

 Pereira (1697)

 collina = Vinha em outeiro; [...] outeiro: Collina, porta de Roma

 Bluteau (1712-28)

 colîna, ou collina = Outeiro. Collis [...] Derivase do Grego Colonòs, que he Eminencia,   Altura

 collîna, ou colina = Deu a Gentilidade Romana este nome aos outeiros em honra da   fabulósa Deóza Collina, que presidia a todos os outeiros. Della faz mençaõ S. Agostinho no   livro da Cidade de Deos. [...] Collina tambem era o nome de huma das quatro partes, em   que antigamente se dividia a Cidade de Roma […]. Tambem a huma das portas de Roma,   perto do dito bairro das Collinas, se deu o nome de Collina.

 Moraes (1813)

 collina = outeiro

 Figueiredo (1913)

 colina = pequena montanha, oiteiro; encosta.

 Moraes (1949-58)

 colina = 1. outeiro, cole, pequeno monte 2. encosta

 Houaiss (2001)

 colina = pequena elevação de terreno com declive suave e menos de 50m de altitude

 Infopédia (2018)

 colina = pequena elevação de terreno; outeiro

Tabela 3 - colina

 

A última forma aqui considerada é morro, palavra que tem uma origem incerta, embora haja formas próximas em várias línguas europeias, como o castelhano, o catalão, o sardo, o francês, o italiano e dialetos alemães. A primeira atestação de morro ocorre no final do século 16 e apresenta uma particularização semântica com a referência a 'elevação de terra rochosa'. O uso de morro intensificou-se no Brasil, a partir do final do século 19, possivelmente devido às características geológicas locais (cf. Tabela 4).

 Bluteau (1712-28)

 morro = Os que fazem vallados chamão Morro à terra, que topão dura, a modo de   piçarra,  ou rocha. [...] O Morro de Chaul, he o nome de huma famosa fortaleza da India,   que os Mouros de Melique fizerão defronte da Cidade de Chaul, da outra parte do rio, na   ponta da terra, à entrada da barra em hüa serra muito alta, & fragosa, a que tambem   chamão Morro. [...]

 Moraes (1813)

 morro = terra dura a modo de piçarra. Monte não mui alto

 Figueiredo (1913)

 morro = Monte, pouco elevado. Oiteiro. Pedreira.

 Moraes (1949-58)

 morro = 1 pequena elevação de terreno firme, monte pequeno, outeiro 2 pedreira 3 bloco

 Houaiss (2001)

 morro = 1 pequena elevação em uma planície; monte de poucas dimensões; colina,   outeiro 2 pedra rija e saliente; pedreira. 3 B. favela (conjunto de habitações populares)

 Infopédia (2018)

 morro = 1 monte de pouca altura; monte, cabeço, colina  2 pedreira. 3 (Brasil) ver favela.

Tabela 4 - morro

 

A Tabela 5 mostra os dados do uso das quatro palavras consideradas que estão disponíveis no Corpus do Português. Essa tabela torna claro que monte é uma das formas mais antigas e a mais frequente, de forma constante, até ao presente; mostra que outeiro é uma palavra antiga e crescentemente em desuso (sendo apenas preservada na toponímia); e mostra ainda que a introdução de colina e de morro, palavras muito mais recentes, ocorre em simultâneo e em distribuição complementar no português europeu e no português brasileiro.

 

Tabela 5 - Dados de uso de monteouteirocolina e morro

Fonte: Corpus do Português

Estes dados deveriam estar disponíveis nos dicionários bilingues, mas, dado que não estão, é importante disponibilizar uma metodologia de trabalho que permita realizar investigações particulares.

Nota final

O exercício da tradução apresenta vários tipos de dificuldades. Algumas delas, as que dependem da proficiência linguística do tradutor, não podem ser auxiliadas, mas outras, as que não dependem da arte do tradutor, podem ser resolvidas com o seu acesso a boas ferramentas de trabalho. Os dicionários bilingues são os instrumentos mais populares e, por essa razão, importa compreender que a sua qualidade pode ser melhorada. No caso de estudo acima considerado, é preciso entender que um dicionário contemporâneo inglês-português não pode apresentar outeiro como possibilidade de tradução de hill, ou que nem colina se adequa ao português brasileiro nem morro ao português europeu. A qualidade destes instrumentos de trabalho não está garantida para o português, sendo importante compreender que essa qualidade depende, em absoluto, de um trabalho de investigação que tarda em começar.

REFERÊNCIAS

Barbosa, A. (1611). Dictionarium lusitanicolatinum [...].Typis, & expensis Fructuosi Laurentij de Basto. clp.dlc.ua.pt/DICIweb (março 2022).

Bluteau, R. (1712-1728). Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu; Off. de Pascoal da Sylva. 10 v. clp.dlc.ua.pt/DICIweb (março 2022).

Cambridge Bilingual Dictionary Online. 2018. Cambridge University Press. dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/ (março 2022).

Cardoso, J. (1569-70). Dictionarium latinolusitanicum & vice versa lusitanico latinu[m] cum adagiorum feré omnium iuxta seriem alphabeticam perutili expositione, ecclesiasticorum etiam vocabulorum interpretatione [...]. Joan Barrerius. clp.dlc.ua.pt/DICIweb/default.asp?url=Obras (março 2022).

Carmo, L. do, Villalva, A. & Cardeira, E. (2019). Words denoting ‘hill’ in Portuguese and Brazilian dictionaries (com). In Villalva, A. & Williams, G., orgs (2019). The Landscape of Lexicography, pp. 147-171. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa - Universidade de Aveiro. ISBN 9789899866652.

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Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa [em linha] (2003-2022). Porto Editora www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/ (março 2022).

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NOTAS

[1] Saussure (1916) caracterizou o signo linguístico como o produto da associação arbitrária entre um significante (uma sequência acústica) e um significado.

[2] São femininas palavras como lente, serpente ou gente, e são masculinas palavras como pente, elefante, ambiente.

[3] São subespecificadas as palavras que têm uma referência humana, independentemente do sexo a que pertencem (cf. estudante, agente ou gerente).

[4] Google Trends é uma ferramenta que permite avaliar a evolução do número de pesquisas de um dado tópico realizadas na Internet, ao longo de um dado período de tempo.

[5] Cf. www.ccportimao.net/lifestyle/articles/joao-tordo-as-tantas-comecei-a-confundir-me-com-as-personagens-destes-livros/ [consultado em 17/03/2022].

[6] Cf. podcasts.apple.com/pt/podcast/às-tantas/id1558895166 [consultado em 17/03/2022].

[7] Cf. www.publico.pt/2000/02/18/jornal/sete-horas-para-encontrar-bebe-raptado-140167 [consultado em 17/03/2022].

[8] Cf. pt.rumo.solutions/post/saúde-mental-6-dicas-para-lidar-com-a-distância-social-e-a-privação-do-toque-e-do-abraço [consultado em 17/03/2022].

[9] Cf. www.deepl.com/translator.

[10] Cf. www.linguee.pt/portugues-ingles/page/imprint.php.

[11] Cf. www.infopedia.pt/dicionarios/ingles-portugues/.

[12] Cf. Carmo, Vicente e Cardeira (2019).

[13]  (i) this natural hill had been enlarged -> essa colina natural fora ampliada

     (ii) edificados sobre a colina que domina a cidade -> built atop the hill towering above the city

[14]  (i) a city that is set on a hill cannot be hidden -> não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte

     (ii) localizada em pleno barrocal Algarvio no cimo de um monte, ambas as propriedades têm vistas formidáveis a toda a volta -> located in the Algarvian "barrocal" on top of a hill, both properties have stunning views all around

[15]  (i) the hill was occupied by 100 police officers -> a ocupação do morro aconteceu com 100 policiais

     (ii) o Rio volta a sonhar com asfalto e morro pacificado -> Rio can once again dream of peace between asphalt and the hills

[16]  there is still a huge hill to climb -> há ainda uma montanha enorme para escalar

[17]  no topo da colina, há um número de bem projetadas e pitorescas comunidades com belas casas -> on top of the mountain, there are a number of well-planned, picturesque communities with beautiful homes

[18]  a colina do médio-oceânico e cadeias de montanhas do mar constituem um vasto e pouco conhecido ecossistema -> mid-oceanic ridges and seamount chains constitute vast and little known deep-sea ecosystems

[19]  ele subiu em uma colina -> he climbed a hillside

[20]  a ermida que estava construindo no alto do monte -> the hermitage he was building on the top of the mountain

[21]  o Papa esteve em visita privada no velho Mosteiro do Monte Nebo -> the Pope paid a private visit to the ancient monastery on Mount Nebo

[22]  Moisés, guia do povo para a liberdade, na primeira luta decisiva também permanece sobre o morro com os braços levantados -> Moses, who guided the people towards freedom, in the first decisive fight, stays on top of the mountain with his arms up high

[23]  um ciclista bem treinado pode subir o morro com facilidade -> a well-trained cyclist can bike uphill with ease

[24] ‘Uma elevação natural da superfície da terra, que se eleva de forma mais ou menos acentuada, acima do nível do terreno circundante. Antigamente, era o termo geral que incluía as agora denominadas mountains; após a introdução desta última palavra, foi gradualmente restringido a elevações de menor elevação; mas a discriminação é em grande parte uma questão de uso local, e do carácter mais ou menos montanhoso do distrito. Elevações que numa localidade são chamadas mountains, são, noutra, consideradas apenas como hills. Um contorno mais arredondado e menos acidentado é também normalmente conotado com o nome.’

[25] “A hill is less than a mountain, but of no definite magnitude, and is sometimes applied to a mountain.”

[26] “an area of land that is higher than the surrounding land”

[27] “a slope in a road”

[28] Os dicionários do português aqui mencionados incluem os dicionários patrimoniais, que podem ser consultados no Corpus Lexicográfico do Português, incluindo um dicionário do século 16 (i.e., Cardoso, 1562-70), dois dicionários do século 17 (i.e., Barbosa, 1611; Pereira, 1697) e um dicionário do século 18 (i.e., Bluteau, 1712-28). O último destes dicionários é consensualmente considerado o primeiro dicionário monolingue do Português (embora ainda inclua muitas traduções e comentários latinos). Segue-se o dicionário de Morais e Silva, de 1813, que abre espaço à lexicografia moderna; o dicionário de Cândido de Figueiredo, de 1913, que servirá de modelo à maior parte dos dicionários do século 20, e dois dicionários contemporâneos, disponíveis online: a Infopédia, dicionário compilado em Portugal, e o dicionário Houaiss, que representa a lexicografia brasileira.

[29] Os dados do uso são aferidos no subcorpus histórico do Corpus do Português.

  

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