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A voz do tradutor na literatura: uma conversa
Entrevista de Francisco José Viegas a Tânia Ganho e Miguel Serras Pereira

Francisco José Viegas (FJV)— Estamos nas instalações do Plano Nacional de Leitura. Hoje o tema é a tradução e os convidados para a conversa são duas pessoas que marcam, marcaram e vão marcar a nossa vida. Tânia Ganho e Miguel Serras Pereira são tradutores e graças a eles temos disponível uma infindável lista de autores que repousam nas estantes aqui à nossa volta. São mais do que mediadores e, no meu caso, como editor, penso que é injusto que muitas vezes eles sejam, não diria ignorados, mas tratados apenas como tradutores.

Uma das dimensões é a dos chamados problemas da tradução, a outra é a importância que estas pessoas — estas duas pessoas, no caso -, os tradutores, têm para nós. São os mágicos dos nossos livros, e uma espécie de poeira no meio das bibliotecas a pairar e a pousar sobre todos os livros. E poeira que passa de um livro ao outro, de uma perdição à outra. Por isso, a nossa palavra para com os tradutores é sempre de gratidão, imensa gratidão, enormíssima gratidão.

Vamos às apresentações. Começo pelo Miguel Serras Pereira. O Miguel nasceu no Porto, em 1949.

Miguel Serras Pereira (MSP)— Na primeira metade do século passado.

FJV— Na primeira metade do século passado. Depois passaste por Abrantes, passaste por Lisboa, também, passaste pela imprensa, foste jornalista n’A Capital, na Vida Mundial — que foi a tua experiência também como cronista político, na altura. A direção era do Augusto Abelaira, nessa época. E publicaste poesia, e também ensaio. Do ensaio temos Da Língua de Ninguém à Praça da Palavra, Exercícios de Cidadania, por exemplo, que são de 98 e 99. É muito curioso, eu lembrava-me de um título muito anterior, que é Outra Coisa— Poesia, Psicanálise e Política: Algumas Linhas.

MSP— Outra coisa.

FJV— Publicado pela Imprensa Nacional.

MSP— Em 84 ou qualquer coisa assim.

FJV— 83.  Sem falar da poesia: InumeraçõesTodo o ano, ainda publicado na Limiar, do Egito Gonçalves, e Trinta Embarcações para Regressar Devagar. Quanto às traduções, já lá vamos.

MSP— Eu, no ano passado, reuni… não uma antologia propriamente dita, mas o que me pareceu a melhor parte dos poemas éditos ou inéditos que escrevi nos últimos cinquenta anos, num livro chamado À Tona do Vazio & Reprise, publicado pela Barricada de Livros.

FJV— Muito bem, aí temos. Já vamos falar da lista dos autores que traduziste ao longo dos anos, que é uma lista enormíssima, desde Bergson até Cocteau, Nadine Gordimer, Pasolini, Natalia Ginzburg, Virginia Woolf, Salman Rushdie. Eu tenho, curiosamente, três livros de que me recordo, que não são as tuas traduções mais significativas, mas são aquelas que, por motivos completamente diferentes, me marcaram de alguma maneira. Um foi, no final dos anos 70, do Glucksmann, A Cozinheira e o Devorador de Homens, depois, mais tarde, a Balada da Cidade Triste, do Pierre Siniac, que foi um livro particularmente importante para mim, e com a Ana Luísa Faria traduziste um dos livros mais importantes da minha vida, que é Um Espião Perfeito, do John le Carré.

A Tânia Ganho não é do Porto, é de Coimbra, e passou também pela imprensa, pela televisão, legendagem, tradução de informação e tradução de muitos e muitos autores. E também quatro romances.

Tânia Ganho (TG)— Cinco.

FJV— Cinco romances. Tinha fixado A Vida sem Ti, o Cuba Libre, o primeiro livro teu que li, A Mulher-Casa, e este último, Apneia. E depois, uma lista de autores que também vai de uma autora que tu prezas muito, a Angela Davis, a Leïla Slimani, de quem começaste agora a traduzir o novo livro, a Alice Walker, a Ali Smith, o divertido David Lodge, a Chimamanda Ngozi Adichie, o Nicholas Shakespeare, a Elizabeth Strout, mas também, curiosamente, Agatha Christie, Erle Stanley Gardner, Robin Cook e Robin Sharma, que é um grande bestseller, com O Monge que Vendeu o seu Ferrari.

TG— Foi uma das minhas primeiras traduções.

FJV— Estamos com dois autores, também. Poeta, ensaísta, ficcionista… Miguel, o trabalho de tradução e o de escrita podem chocar, acontecem em paralelo ou entrelaçam-se?

MSP— Acontecem mais em paralelo, talvez, enfim. É evidente que, ao traduzir, mobilizo os meus recursos de escrita, mas procuro não impor o meu estilo, os meus tiques, a minha idiossincrasia literária, a minha poética própria aos autores que traduzo, até porque, como sabes, todas as vozes próprias são muito diferentes. Portanto, o que procuro é fazer aquilo que o Octavio Paz dizia, e que teoricamente é impossível: traduzir o mesmo poema noutra língua. E o mesmo poema aqui pode ser o mesmo romance, etc., porque, de facto, em toda a literatura há um jogo, e mais do que um jogo, há um entrelaçamento, uma fusão de sentido e som que fazem com que baste mudar de língua, ainda que para línguas próximas, para obrigar a que o trabalho de tradução seja um trabalho de recriação, não seja só um trabalho de reprodução ou de vocabulário, ou de dicionário. Porque não é só disso que se trata — e há, portanto, criação.

FJV— Pode dizer-se que são separadas as tuas funções de autor e de tradutor?

MSP— As minhas funções?

FJV— Se não há conflito, muitas vezes?

MSP— Não, não há conflito, quer dizer, há conflitos de gosto. Eu fiz muita tradução “alimentar”, embora às vezes não só, porque há muitas coisas que eu gostei efetivamente de traduzir e que me enriqueceram ao traduzi-las, mas traduzi livros de que não gosto ou dos quais sentia uma certa distância— e aí há de facto um conflito de gosto. O outro é mais difícil avaliar, mas é uma pergunta bem feita. Eu não tenho consciência disso. A que ponto alguns autores que eu traduzi, e pelo facto de os traduzir, não por os ter lido noutra circunstância, marcaram alguma coisa ou acrescentaram ou fizeram retirar inflexões à minha voz própria? Não me compete a mim dizer, mas é possível. É uma pergunta bastante pertinente, como é teu timbre, de resto.

FJV— Vamos deixar esta mesma pergunta também para a Tânia.

TG— No meu caso, eu acho que se complementam, a tradução e a escrita. Aprendo muito, muito, muito com a tradução. Aprendo tudo aquilo que resulta. Ao nível estilístico, ao nível da estrutura, sobretudo ao nível da estrutura. A arquitetura dos romances é muito interessante. Ver como é que a mecânica toda funciona dá-me ideias para os meus próprios romances. Também aprendo com o que não funciona.

FJV— Já agora, com que autores é que aprendeste mais?

TG— Eu tenho tido a sorte, ou o privilégio enorme de traduzir, nos últimos anos, só autores e muitas autoras de que gosto muitíssimo, portanto sinto que aprendo com todas.

FJV— Estava a pensar em autoras como a Rachel Cusk.

TG— Sim, a Rachel Cusk é uma autora que traduzi já há uns anos e nunca me vou esquecer do romance que traduzi, o Arlington Park, que achei brilhante, tanto ao nível da estrutura como ao nível do desenvolvimento das personagens. Portanto, aprendi muito e marcou-me muito. A Siri Hustvedt, que é outra autora fascinante, uma mulher cultíssima e, portanto, traduzi-la...

MSP— Deixas-me fazer um aparte, posso? Ainda bem — soube agora, há bocado — que vai ser traduzido o primeiro livro de ensaios dela cá, que é sobre mães, pais e filhos — é o último, de resto. É uma ótima notícia porque, quanto a mim, a Hustvedt é talvez ainda mais interessante como ensaísta do que como autora de ficção. Ainda bem que és tu, Tânia, quem o vai traduzir.

TG— Estou muito entusiasmada com a tradução.

MSP— Mas estou agora a pensar noutro livro, The Shaking Woman, A Mulher que Treme. Uma História dos Meus Nervos, que é um livro fundamental dela. Um tour de force fascinante, porque percorre a literatura psicanalítica, psiquiátrica, literária e a sua própria vida, tudo caldeado. Provavelmente, ficará como um marco na história do ensaísmo contemporâneo, assinalando uma inovação decisiva. Siri Hustvedt é também muito interessante como romancista, mas penso que, como ensaísta, é absolutamente excecional.

TG— Eu senti que, no Recordações do Futuro, ela conseguia aliar as duas coisas — e mesmo em O Mundo Ardente, também.

MSP— Aliás, nesses romances, retoma coisas que escreveu noutros registos… Retoma, atribuindo à protagonista, episódios que nós, os que lemos os outros livros mais autobiográficos ou ensaísticos dela, reconhecemos. Muda a profissão do pai, muda a profissão do marido, mas, em boa parte, é o universo dela, e a sua história, o ponto de partida, o argumento das Recordações do Futuro.

TG— É o universo dela. Mas gostava de deixar aqui esta ideia: acho mesmo que a tradução e a escrita se complementam. A única coisa em que chocam é no tempo. A tradução acaba por roubar muito tempo à escrita. Mas nem é “roubar”, porque, como se aprende muito, creio que depois a escrita vai sendo feita noutro horário, em paralelo, como dizia o Miguel, mas acabo sempre por transpor coisas da tradução, trago-as para a escrita. Tento é não fazer o oposto, como o Miguel disse, não levar coisas da minha escrita e as minhas idiossincrasias para a tradução.

FJV— Como o Miguel disse, levar os tiques.

TG— Todos nós temos tiques, temos muitos tiques linguísticos. Tento policiar-me quando estou a traduzir e não ter demasiada Tânia Ganho, a autora, nas traduções, porque o meu papel, a minha missão como tradutora é dar voz em português aos autores e, portanto, tenho de os respeitar ao máximo, respeitar todo o estilo, o universo.

FJV— Como é que se respeita— pergunta para os dois, obviamente— o estilo? Com muita leitura, suponho, antes do mais.

TG— Muita leitura. Por exemplo, se vou traduzir um livro de um autor que já publicou outros livros anteriormente, eu leio tudo, romances, entrevistas, faço quase um trabalho de pesquisa para saber quem é que estou a traduzir. E depois pode não me servir de nada na tradução ao nível prático, mas serve-me no sentido em que parto para a tradução com a sensação de que já sei quem é que vou traduzir. Claro que agora, como traduzo autores que estão vivos…

FJV— Falas com alguns deles, não é?

TG— … é ainda mais fácil entrar no universo deles, porque se tenho dúvidas, posso perguntar.

FJV— Podes tirar dúvidas.

TG— E faço-o. Por exemplo, as redes sociais, que são tão criticadas por algumas coisas, têm essa vantagem. Já cheguei a tirar dúvidas com um autor que traduzi há pouco tempo, o Robert Jones Jr., que publicou Os Profetas. Ele está nos Estados Unidos, e eu encontrei-o no Instagram, of all places. Trocámos mensagens, ele tirou dúvidas, e isso facilita muito o trabalho de saber que estou a respeitar aquilo que o autor queria dizer, o que nem sempre é fácil quando traduzimos autores que já não nos podem elucidar.

FJV— Era isso o que eu ia perguntar. Imagina que agora vais ter que traduzir Dickens.

TG— É outro desafio. Por exemplo, traduzi o Stoner, do John Williams. Tive muitas dúvidas, porque ao nível do estilo é um livro que parece muito simples, mas não o é. Passei muitas horas às voltas com frases, mas foi um desafio engraçado pensar: “O autor não está aqui para me esclarecer, portanto, deixa-me interpretar”. Foi um trabalho criativo talvez mais intenso, com mais margem de manobra e liberdade poética do que se o autor estivesse ao dispor para me tirar dúvidas.

FJV— Imagino que, Miguel, também pode ter colocado algumas questões, por exemplo, traduzir vozes tão diferentes como Proust, por um lado, e Kundera, por outro, que são de tempos diferentes, linguagens diferentes, ou traduzir a Virginia Woolf…

MSP— O que eu procuro é respeitar o estilo, chamando-lhe assim ou de outra maneira; é de facto importar para português, para a minha língua, uma voz que já é única na sua própria língua. O Proust, precisamente, dizia que o escritor é estrangeiro na sua própria língua. Portanto, não é só saber o francês escolar ou o inglês escolar. O Pedro Tamen dizia — era uma boutade, não uma recomendação — que não é preciso saber a língua que se traduz, tem é de se saber português, de se ser capaz de escrever português, porque o resto vem por acréscimo. Isto não é bem assim, como, de resto, o Pedro não deixava de sublinhar. Mas há aqui, de facto, um problema de fundo. Alguém diz, não sei se é o Castoriadis, que o Proust, sempre que escrevia uma frase, mudava a língua francesa — tecendo esses seus períodos desmesuradamente longos, etc. E eu, como tradutor, é essa voz que se faz estrangeira na sua própria língua que procuro importar. Já tenho recorrido a autores que traduzo, mas menos do que tu, Tânia, por várias razões, até porque em muitos casos isso seria impossível. Mas com o Kundera e o Magris, por exemplo, troquei alguma correspondência. O Kundera, por iniciativa dele, porque controlava muito as traduções — sempre afável, mas muito rigoroso. Estou a lembrar-me de que, por exemplo, em francês, se diz "Église Notre Dame",  e não  "Église de Notre Dame". Ora, num dos livros do Kundera, havia uma Église Notre Dame, que eu traduzi por Igreja de Nossa Senhora — não era forçosamente a de Paris, acho que nem sequer era. Ao percorrer, suponho que com o auxílio de algum amigo lusófono, a minha tradução, o Kundera escreveu-me: “Mas olhe que eu escrevi só Église Notre Dame, e não "de Notre Dame”  — e eu lá lhe expliquei que, em português, não se diz assim e o "de" não é dispensável. Com o Magris tive ocasião de esclarecer algumas dúvidas com que deparei ao traduzir o Danúbio. Foi um autor extremamente simpático, que me escreveu mais tarde sobre outros assuntos. Mas, dito isto, tanto no caso dos contemporâneos ainda vivos, como no caso de autores anteriores, o principal diálogo, tenho de o fazer diretamente com a voz do texto do autor…

FJV— Com a vantagem de que o Magris entende vagamente o português.

MSP— Ao diálogo com o texto do autor, acrescento, evidentemente, nalguns casos, as coisas que se escreveram sobre os autores que traduzo. O que aconteceu quando traduzi o Quixote, por exemplo. Li mais coisas, ou li coisas que não tinha lido, ou rememorei leituras sobre Cervantes, sobre o Quixote.

FJV— Isso não foi um choque? De repente, dizes: “Agora vou defrontar o Monstro, agora vou defrontar o Cervantes”.

MSP— Foi muito interessante, porque o castelhano em que ele escreve é muito mais próximo do português da época, do séc. XVI e XVII, do que hoje o português o é do castelhano. E isso, ao mesmo tempo, tornava a tarefa mais fácil. Por isso, digo muitas vezes que a tradução de Cervantes não foi uma das mais difíceis que fiz. O que surpreende muita gente. Por exemplo, o Jorge Silva Melo uma vez disse-me: “Ah, está bem, eu daqui para a frente vou dizer que traduzir o Cervantes é canja!”.

(Risos)

FJV— Tânia, o Miguel não concorda com aquele princípio do Pedro Tamen que citou.

MSP— Não, concordo. Concordo com o grão de sal.

FJV— Com o grão de sal, exatamente. Qual é a natureza do teu grão de sal?

TG—Temos de conhecer muito bem as duas línguas, quer a de partida, quer a de chegada. Temos de conhecer a nossa língua, essencialmente. Nesse aspeto, concordo.

MSP— Até para o estranhamento, sabes? Porque, quando se diz “Vamos fazer um português diferente”, tens que conhecer o português habitual e corrente para o poderes alterar.

TG— Sim, para podermos adaptar o português aos diferentes registos que encontramos na tradução, temos que dominar muitíssimo bem o português. Isso é a base de tudo. E depois temos que conhecer também a língua original.

MSP— Até para perceber os tons, se há ironia…

TG— Exatamente, para perceber os diferentes registos.

MSP— Embora na tradução, de facto, haja sempre exceções, sobretudo em tradução de poesia. Há traduções de poemas que são feitas por poetas e que resultam muito bem em português, digamos, ou em francês, apesar de os tradutores em causa não saberem grego, por exemplo.

TG— A história da tradução está cheia desses exemplos.

MSP— Em Mateus, fazíamos uma coisa muito interessante. Éramos quatro ou cinco a traduzir poemas — isto é, tradução de poesia — de línguas que não sabíamos. Portanto, estava lá o poeta — eram só poetas contemporâneos —, que lia o poema, estava um intérprete, que o traduzia o mais literalmente possível, e a quem podíamos fazer perguntas sobre o que é que significava uma palavra, por exemplo. E depois fazíamos coletivamente um poema em português. No fim, ficava um de nós só a fazer a versão final. Mas diga-se que a versão final, pelo menos segundo a minha experiência, poucas diferenças tinha da que saía do trabalho coletivo. Tratava-se de uma tradução em que nós, os tradutores, não sabíamos a língua que estávamos a traduzir.

FJV— Tânia, na lista das tuas traduções há uma variedade enorme: há livros de autoajuda, se quisermos, há policiais, agora há todo este romance contemporâneo, os romances contemporâneos que estás a traduzir. O facto de estares mais próxima de uns livros do que de outros significa que fazes melhor umas traduções do que outras?

TG— A minha obrigação é fazer todas com a mesma dose de empenho, e creio que o fiz.

FJV— Mas estamos no Plano Nacional de Leitura, podes ser sincera.

TG— Não, creio que o fiz. Simplesmente, convém é fazer aqui a distinção. Os livros de autoajuda foram o início, foram a porta de entrada nas editoras. E felizmente — e aqui vou ser muito sincera — felizmente, nos últimos anos, já só traduzo mesmo aquilo de que gosto. Não me lembro sequer da última vez em que aceitei uma tradução de que não gostava.

FJV— E muitas vezes sugeres.

TG— E muitas vezes sugiro. Faço relatórios de leitura para editoras e sugiro, quando encontro um autor interessante, como, por exemplo …  Estava aqui a ver os livros. Estamos numa casa belíssima, rodeada de livros, e estava aqui a ver o livro do Davide Enia, que é italiano, Notas sobre um naufrágio. Eu li o livro, porque foi a agente literária que mo propôs e mo enviou. E imediatamente pensei: “Este livro tem de ser traduzido e tem de ser publicado cá. Mesmo que tenha poucos leitores.” É um livro importantíssimo nos tempos em que vivemos, sobre os milhares de pessoas refugiadas que estão a morrer diariamente no Mediterrâneo e que infelizmente são esquecidas. O autor escreve um livro extremamente autobiográfico, muito humano e nada moralista. Ele limita-se a descrever os seus sentimentos e os sentimentos do pai perante o que se está a passar. E gostei muito do tom dele, literariamente muito elegante. Gostei desta ideia de a literatura estar ao serviço de qualquer coisa maior. É muito humano e, portanto, eu imediatamente disse: “Vou falar com as editoras e vai ser publicado”. Portanto, nestes últimos anos, já não sei quantos, cinco, dez, tenho traduzido mesmo só autores que considero terem literariamente muita qualidade — e isso para mim é importante. Acho que as livrarias estão cheias de livros que não têm um valor literário que mereça sequer o destaque. E, portanto, o meu papel enquanto tradutora é cada vez mais levar ao público livros em que acredito, literariamente, emocionalmente.

MSP— Sim, não é só valor literário. Não têm valor, e chega.

TG— Sim.

FJV— No teu caso, Miguel, há um investimento em autores, sentes-te muito mais próximo de autores. Sugeriste traduções de vários autores, sobretudo na área do ensaio.

MSP— De George Steiner, na área do ensaio. Suponho que fui eu que sugeri a publicação das suas primeiras traduções. Quando o traduzi pela primeira vez, creio que, em Portugal, não havia traduzido dele senão o seu pequeno livro sobre Heidegger.

FJV— Sim.

MSP— Quando eu comecei a traduzir, mas…

FJV— Mas depois No Castelo do Barba Azul, After Babel

MSP— Presenças Reais. Muitos deles fui eu que sugeri, sim.

FJV— Como é que é essa relação? Obviamente, porque estás mais próximo do editor, tens uma relação privilegiada com o editor.

MSP— Se não me engano, traduzi livros do Steiner para três editoras: o primeiro livro dele que traduzi — Presenças Reais — traduzi-o para a Presença, e propus um posfácio cuja inclusão no livro o autor aprovou. Depois, fiz várias traduções de Steiner para a Relógio d’Água. Por fim, houve um projeto com a Gradiva que acabou por ser interrompido, suponho que pela grande crise económica que sabemos. Tratava-se de publicar praticamente toda a obra de George Steiner, ainda vivo ao tempo. Traduzindo o que não estava traduzido e retomando as traduções já editadas por terceiros. Embora o projeto tenha sido interrompido, tive, graças a ele, a ocasião de traduzir mais alguns livros do autor.

FJV— Há uma das frases da Tânia que eu não gostava de perder, que tem a ver com a aprendizagem. A Tânia disse que aprende com os autores que traduz. E era, se calhar, importante saber de ambos quais são os autores com quem aprenderam mais.

TG— Chimamanda Ngozi Adichie. O primeiro livro que eu traduzi da Chimamanda foi sobre a guerra do Biafra, Meio Sol Amarelo, que é uma obra extraordinária. Tenho uma lista de livros que constituem a minha biblioteca pessoal e a Chimamanda, com o Meio Sol Amarelo, realmente, tem aí um lugar de destaque. Aprendi muito com ela. Como é que se consegue contar uma história que, do ponto de vista literário, está impecável? Não há nada a dizer ao nível da estrutura, da construção das personagens e, ao mesmo tempo, ela consegue contar um pouco da história da Nigéria, e consegue ensinar sem nunca ser pedagógica, sem ser paternalista. Portanto, é um livro para mim muito bem conseguido.

A Leïla Slimani, que tenho o prazer de traduzir neste momento, é uma autora que está a fazer uma carreira muito interessante, porque se vai reinventando de romance para romance. Mas sempre com os seus temas. Ela aborda muito a mulher, a sexualidade das mulheres, Marrocos, a sua relação com o país da sua família e, portanto, também vou aprendendo muito sobre como é que se consegue conjugar o público com o privado. Como é que se consegue contar uma história que tem muito de pessoal e, ao mesmo tempo, incluí-la num contexto histórico. Eu gosto muito dos meus autores.

FJV— Isto é muito bom de se ouvir: “Eu gosto muito dos meus autores”.

TG— Gosto mesmo muito.

FJV— Miguel?

MSP— Comigo é um pouco diferente, porque eu não sou ficcionista e tenho traduzido fundamentalmente ficção e ensaio. E, na poesia, de facto, por muito que tenha aprendido com muita poesia estrangeira — espanhola, francesa, inglesa, etc. —, digamos que as nascentes estão mais na minha própria língua. Mas, se não escrevo contos nem romances, posso dizer que nos ensaios, sim, tenho sido formado por algumas coisas que traduzo.  O Steiner, por exemplo, aprendo muito com ele e constitui uma referência explícita dos meus escritos críticos e ensaísticos. Enfim, creio que traduzi-lo ajudou, mas sei que, ainda que o não tivesse traduzido, não deixaria de ter sido um encontro decisivo para mim. Também o Kundera me sugeriu pistas e deu que pensar. Refiro-me não só ao Kundera dos ensaios, como também ao ensaísta que há sempre no romancista Kundera. A sua conceção do romance, a sua conceção do lugar do romance na literatura, a sua conceção do romance como interrogação ilimitada sugeriram-me caminhos e questões que ainda hoje procuro manter em aberto… E provavelmente haverá ecos das minhas leituras e traduções de Kundera naquilo que escrevo. Mas é verdade que, sem a pergunta do Francisco, eu não teria pensado agora no Kundera. No Steiner, sim, porque, como escrevo sobre tradução, escrevo sobre a literatura, o sentido e as artes do sentido, a interpelação é imediata. No caso do Kundera, as coisas são diferentes, mas na sua leitura e nas traduções que dele fiz descubro também pistas importantes. Estou com certeza a ser injusto, ao não falar de autores que me marcaram muito e que não traduzi.  Como Merleau-Ponty, por exemplo.

FJV— Gostavas de traduzir o Merleau-Ponty?

MSP— Gostava muito de traduzir o Merleau-Ponty. Acho que é fundamental. Aliás, é um dos autores preferidos da Ustvedt ensaísta, já que estivemos a falar dela, que retoma muito bem alguns dos grandes temas de Merleau-Ponty.  Voltando a Portugal, o David Mourão-Ferreira influenciou-me muito, não que eu escreva como ele, nem que faça sequer sempre os mesmos juízos de gosto que ele faz, mas a sua perspetiva crítica, a sua ideia da literatura como linguagem carregada de sentido são, de facto, conceções que calam fundo naquilo que eu escrevo como ensaísta.

FJV— Mas, como tradutor de ensaio, obviamente, sentes-te muito mais próximo de uns do que de outros. A latitude das tuas traduções vai de Ortega y Gasset até Slavoj Žižek, passando por Raymond Aron. Traduziste aquele “monstro” do Paul Feyerabend, Contra o Método, uma coisa imensa, traduziste o Teillard de Chardin… Mesmo nesses ensaístas, descobres o grão de sal?

MSP— Nem em todos. Estou muito longe do pensamento do Žižek. Acho estimulante, acho que tem muita graça de vez em quando, mas, mesmo quando posso concordar com o Žižek em algumas coisas, estou mais longe dele do que quando discordo de algumas coisas do Steiner, por exemplo. Mas eu já nem me lembro do que me estavas a perguntar ao certo. Ah, se há o grão de sal…

FJV— Descobres esse grão de sal mesmo em ensaístas com que não concordas?

MSP— Isto não é concordar só, não é? É mais fácil estabelecer um diálogo.

FJV— Não, não, de quem te sentes menos próximo. A tradução é também entrar em diálogo com os autores. Mas, no ensaio, é muito mais fácil concordar, discordar, ter opinião e, portanto, situá-los ideologicamente em relação a ti. Aquilo que eu gostava de saber, por exemplo, no teu caso específico, como tradutor de ensaio… Por exemplo, vimos que a Tânia gosta especialmente da Chimamanda, que é uma autora mais próxima ideologicamente daquilo que a própria Tânia escreve e dos autores que ela prefere; no teu caso, a latitude ideológica é muito mais vasta.

MSP— Sim, há autores com quem eu aprendi muito…

FJV— Desculpa, Miguel. É que às vezes podes não concordar, mas percebes que é um grande ensaísta, é essa a diferença.

MSP— Posso não concordar, embora concorde com muita coisa, mas posso não chegar às mesmas conclusões, no imediato, a que o Raymond Aron chegava. Mas nem por isso deixo de pensar que foi um pensador e ensaísta profundo, que ensinava a pensar e a interrogar, e é isso o que, no fundo, sem dúvida, mais importa.

FJV— Há uma frase muito curiosa da Tânia que foi dita num festival de literatura em viagem em que falámos de tradução, a certa altura. A Tânia — tem a ver um bocadinho com o que vocês disseram sobre a maneira como reescrevem um autor— disse que traduzir era ser um bocadinho ghostwriter. É muito curiosa esta noção. Estás a escrever em nome de alguém, Tânia?

TG— Sim, estou a escrever em nome de alguém e gosto dessa imagem do fantasma. Fala-se muito, e andamos todos a lutar por este estatuto de “somos autores”, “nós, tradutores, também somos autores”, mas confesso que há uma parte de mim que sempre gostou desta ideia do fantasma que está sossegadinho no seu canto a fazer um trabalho de bastidores. E vejo-me sempre, enquanto tradutora, num diálogo constante, mas é um diálogo muito íntimo e é uma coisa só minha, que depois eu espero que transpareça para os leitores. Mas é um universo muito peculiar. Estou eu e o autor— e o autor por vezes nem me conhece, nunca me viu— mas estou ali num mundo com ele, como se fosse quase uma presença etérea. E gosto dessa relação, há qualquer coisa de muito poético nisso.

MSP— Mas que é diferente da relação do escritor-fantasma prosaico com o autor.

TG— Sim, claro. É um ato poético, não é?

MSP— Aliás, no livro da Hustvedt que traduziste há pouco tempo, às tantas, aparece a ghostwriter da… já não sei de quem, e aí é evidente que a identificação não existe; pelo contrário, aquilo é um trabalho puramente monetário.

TG— Mas, a mim, fascina-me a figura dos ghostwriters. Por exemplo, agora, de cada vez que ouço o Zelensky, penso “És tu que escreves os teus textos?” ou “Quem é o teu ghostwriter?” E acho fascinante esta figura. Há alguém por trás? Até pode ser ele, não sei. Há alguém por trás que está a transmitir todas estas ideias e a fazer uma produção de textos riquíssima todos os dias?

FJV— Tens uma personagem, num romance, justamente, que escreve textos…

TG— Exatamente, que é ghostwriter. Interessa-me muito este papel do tradutor e o papel do ghostwriter. Enquanto um— acho eu— é muito poético, que é o tradutor, o outro é mais como tu dizes, Miguel, é o técnico, vai escrever. Mas eu gosto de fazer a aproximação entre os dois. E, aqui, “diálogo” é a palavra-chave. Tal como há um diálogo na tradução, pelo menos na tradução que eu faço, há sempre um diálogo, por exemplo, com outros tradutores de outras línguas. Quando traduzimos o mesmo texto, tento procurar quem já o traduziu para inglês, francês, italiano, espanhol e estabeleço ali uma pequena comunidade de troca. Há também o diálogo não só com o autor, mas com o revisor. Também há outros tipos de diálogo. Há aqui toda uma série de relações que se estabelecem ao nível da tradução e que não se veem, mas que estão lá. É toda uma comunidade que eu acho especialmente interessante.

FJV— Não tens essa relação de ghostwriter, não te sentes próximo, Miguel.

MSP— Nunca tinha pensado nisso. Talvez não sinta tanto como a Tânia. Embora concorde com tudo o que tu disseste agora, Tânia, sobre o que é fundamental no diálogo. E não se trata do diálogo só com o autor, mas também do diálogo entre as línguas. Porque uma das grandes coisas que a tradução faz é que importa para a nossa língua coisas que ela, de outro modo, nunca diria — desde formas literárias como o soneto, que vem de Itália e depois se difunde e se transforma um pouco por toda a parte, até aspetos muito mais profundos, na própria substância e história da língua. Os exemplos clássicos a este propósito não remetem tanto para o português e outras línguas de países católicos, mas para os países protestantes. O alemão e o inglês são muito moldados — quer dizer fixados e dinamizados — pelas traduções da Bíblia de Lutero e do King James, que marcam toda a literatura alemã e inglesa, e mesmo a oralidade das duas línguas, porque, nesses e noutros países protestantes, a Bíblia era de leitura diária, em família. E, portanto, é desconcertante, é fascinante pensar que a originalidade de uma língua, o caráter e a identidade do alemão, ou do inglês, são profundamente marcados por uma tradução. Como, a propósito, o Quixote também se dá como uma tradução.

FJV— Já percebemos que traduzir o Quixote foi fácil para o Miguel, é uma coisa maravilhosa de ouvir.

MSP— Eu, nessa altura, andava todos os dias duas ou três horas a cavalo. Passei dois anos e pouco a traduzir o romance. Tinha um cavalo um bocadinho melhor do que o Rocinante, mas era um garrano, que era o que me servia para andar por montes e vales como gosto, porque não faço equitação de concursos nem coisa nenhuma dessas.  Então, quando estava cansado de traduzir o Quixote, ia buscar inspiração ao ar livre e andava por aí num cavalo chamado Belver.

TG— Ora aí está uma bela imagem!

FJV— É mesmo uma bela imagem, a do tradutor que experimenta cavalgar. Eu queria só perguntar-vos, já que chegámos a uma parte que é a das listas: que livros foram os mais difíceis de traduzir?

MSP— Não sei, mais difíceis de traduzir… Apesar de tudo, o Quixote. (Risos) É, dos que traduzi, talvez o mais exigente em termos de condições preliminares. Sim, mas haverá outros, que não consigo hierarquizar assim, em termos de dificuldade, apanhado de surpresa como fui.  Do Proust, traduzi somente Um Amor de Swann, há muito tempo, e mais tarde foi ao Pedro Tamen que coube a sorte de traduzir, e exemplarmente, a Recherche. Também foi difícil traduzir Um Amor de Swann, mas estava muito empenhado em fazê-lo, e gostei muito.

FJV— Nem Beckett foi tão difícil? Era complexo.

MSP— É difícil transpor aqueles diálogos. E não só, claro. Mas as coisas mais difíceis de traduzir às vezes são as mais simples, são os diálogos e as formas de tratamento. Como é que tu decides, a meio de um romance, em que a relação entre duas pessoas será formal, será o nosso “você”, ou “o Senhor”, que a certo momento passe ao “tu”? Isso é uma decisão do tradutor, que não está lá. Tudo o que tem a ver com essa marca muito oral e muito próxima do quotidiano, onde está o espírito da língua, é um problema muito bicudo e que aparece em obras que não seriam muito difíceis para quem as lesse no original: “Não, esta tradução não é muito difícil, este francês lê-se muito bem, este inglês lê-se muito bem”. Mas pô-lo em português que se leia muito bem ou igualmente bem, às vezes, é muito complicado.

TG— Também costumo dizer que os diálogos são muito exigentes. Os diálogos, no meu caso, exigem que eu leia muitas vezes em voz alta, quase como se estivesse a fazer a encenação, para ter a certeza de que me soa bem, aquilo tem de fluir em português. Porque, às vezes, quanto mais simples é um diálogo, pior é para traduzir, fica artificial. Portanto, perco muitas horas a fazer, às vezes, um diálogo de meia dúzia de linhas— e que parece um trabalho muito simples, mas não o é.

FJV— A simplicidade dá imenso trabalho.

TG— A simplicidade dá muito trabalho!

MSP— Quando há distorção muito grande, também. Acabei há pouco tempo de traduzir um livro do Jean Genet, que se entretém a distorcer o francês, quer dizer, mantendo-o corretíssimo, mas como se fosse em latim, quase, com os complementos todos intercalados, etc. E isso é um autêntico puzzle, porque uma pessoa tem de estar para ali a tentar que tudo fique gramaticalmente aceitável, ou até mais escolar do que o normal, mas ao mesmo tempo torcido e bizarro. Há frases que têm de ser lidas duas vezes, quer no francês quer numa sua tradução minimamente adequada. Aí está, não simplificar, não limar demasiado. Porque há uma tendência da parte de alguns tradutores para escolarizar o português da tradução: “Isso não se percebia bem, assim ficou mais claro”. Ora tal é justamente o que não se deve fazer, digo eu…

FJV— No caso do Miguel, o livro mais fácil de traduzir foi o Quixote. O mais difícil de traduzir foi o Quixote. E no teu caso, Tânia?

TG— No meu caso, digo já dois. A Ali Smith, A Acidental. Foi o mais difícil, porque tem capítulos inteiros que são títulos de filmes do cinema mudo, trechos de canções— e eu comecei a ler e a pensar: “Há aqui qualquer coisa que me está a interpelar, o que é?”. E então pensei ir ao Google. Pus frases inteiras, não dava em nada, então comecei a dividir as frases e percebi que eram títulos, versos de músicas. Portanto, graças às tecnologias, consegui fazer a tradução. Exigiu uma série enorme de notas de rodapé, mas foi muito divertido. Houve alturas em que pensei “Vou enlouquecer!”, mas foi muito divertido.

FJV— Imagina. Hoje temos o Google Maps, por exemplo, para ver as ruas das cidades, que são importantes. Imagina há cem anos.

TG— Há cem anos a Ali Smith não teria escrito este livro, certamente. Mas foi um desafio muito engraçado.

MSP— E tem outros problemas, porque tu encontras o título do filme, mas o título do filme, em português, muitas vezes, é outra coisa.

TG— Não bate certo. E, portanto, dá outra frase completamente diferente. Isso foi um desafio.

FJV— O mais difícil foi o da Ali Smith.

TG— E o segundo livro, eu diria ao mesmo nível, foi A Vida em Surdina, do David Lodge, que é um livro maravilhoso. Conseguiu fazer-me rir, chorar… E ele assenta toda a premissa do livro numa personagem principal que é um homem surdo e, portanto, o livro está carregado de trocadilhos. E aí sim, conversei com o David Lodge, por email, e depois encontrei-o em Paris e troquei algumas ideias com ele, porque, para conseguir adaptar os trocadilhos para português, por exemplo, pedi-lhe autorização para alterar o nome de uma personagem: para rimar, arranjei uma “Moira” para rimar com “loira”. No original, já não me lembro, era Bob ou qualquer coisa assim… E lá estivemos a conversar, para aquilo resultar em português; portanto, também foi um desafio. Também achei que houve alturas em que pensei “Não vou conseguir” e, depois, sinto que ficou um trabalho criativo.

FJV— Não tens um livro que seja “o mais fácil de traduzir”, ao nível do que o Miguel dizia do Cervantes.

MSP— Nem toda a gente tem a sorte de poder traduzir o Cervantes…

(Risos)

TG— Não, até porque eu fixo mais os desafios, aqueles que me levaram quase à exasperação e ao desespero.

FJV— Então, a Ali Smith e o David Lodge estão nessa lista. E agora, Tânia, os livros que mais gostaste de traduzir?

TG— Um Gentleman em Moscovo. Gosto muito do Amor Towles. Acabei de entregar o novo romance dele, mais 500 ou 600 páginas. Gosto muito do que ele faz. É um autor muito elegante, muito clássico e também muito atento aos pormenores. Aliás, tão atento que tem o cuidado de enviar aos tradutores, de cada vez que publica um livro, um ficheiro com vinte e poucas páginas a explicar referências e a estrutura do livro. E, portanto, é muito engraçado trabalhar com ele. Olha, estou a ver aqui, na pilha de livros, a Vanessa Springora, que é editora e que publicou um livro que eu achei importante, quer se goste quer não se goste, quer se concorde quer não. Foi interessante ela trazer para a praça pública a questão da autodeterminação sexual dos adolescentes, falar do que é uma relação entre um adulto e uma adolescente— e creio que o faz com muita sobriedade. Também gostei muito de traduzir esse livro. Podia falar aqui o dia todo dos meus autores.

FJV— Miguel, os livros que gostaste mais de traduzir.

MSP— É difícil, mas os livros do Steiner.

FJV— O Cervantes, necessariamente, para fazer parte da lista mais uma vez.

MSP— Sim. O Cervantes, pela época em que o traduzi. Foi um desafio, nunca tinha pensado em traduzir o Cervantes. Mas foi uma encomenda do Nelson de Matos, pelo centenário — às vezes, a encomenda também é boa, o pretexto, a ocasião. Mas gostei muito de traduzir o Steiner, alguns livros do Kundera, nomeadamente, Os Testamentos Traídos, que era um livro de ensaios, e A Imortalidade.

TG— Que nos marcaram, os livros do Kundera.

MSP— Que nos marcaram. E o Raymond Aron. Gostei muito de traduzir As Etapas do Pensamento Sociológico. E muitas outras coisas.

FJV— E agora?

TG— Desculpa, tenho de falar na Elisabeth Strout, já me estava a esquecer. Também vai sair daqui a muito pouco tempo um novo livro, que se chama Oh, William! e que é a continuação de outro que já foi publicado em Portugal (não fui eu que o traduzi), que é O meu nome é Lucy Barton. A Elisabeth Strout também é um exemplo de autora cuja carreira eu gosto muito de acompanhar, porque ela criou um universo muito próprio e depois faz este jogo: transporta personagens de livro para livro, ou regressa à mesma vila e fala de outras personagens, mas estamos sempre no mesmo contexto. E também tem uma carreira muito boa, muito sólida.

FJV— Isso é muito curioso, essa experiência de traduzir um autor que já foi traduzido, ou seja, quando há uma tradição. Qual é a vossa reação, de respeitar a tradição ou de partir do zero?

TG— Não, eu vou sempre ver tudo o que foi feito antes e tento ser coerente com o que foi feito antes, a menos que não concorde com alguma coisa.

MSP— Que eu me lembre, não tenho essa experiência direta de autor contemporâneo e de traduções contemporâneas. Quer dizer, alguns dos autores que eu traduzi tinham traduções, mas já de outra geração, entretanto os critérios mudaram— como, por exemplo, as traduções do Cabral do Nascimento, da Maria Franco, outras coisas, que são completamente diferentes, com todo o respeito. E as do Cervantes que havia, a do Aquilino, que é mais uma versão do que uma tradução, a dos Viscondes de Castilho e Azevedo, e outras, essas consultei-as, de facto. Mas, enfim, se eu tiver que traduzir o segundo volume de uma obra cujo primeiro volume foi traduzido pela Tânia, é evidente que tenho que levar isso em conta. (Risos) E fá-lo-ei.

TG— Especialmente, quando as personagens transitam de um livro para o outro, como é o caso de Lucy Barton. Portanto, é uma questão de coerência. Há frases, inclusivamente, que se repetem de um livro para o outro. E eu vou buscá-las e respeito-as.

MSP— Exatamente, se uma das personagens tem um tique linguístico ou tem uma idiossincrasia.

FJV— Isto é muito curioso na literatura policial, onde as personagens costumam transitar de um livro para o outro.

MSP— Ah, gostei muito de traduzir o Simenon.

FJV— Sim, estava a pensar no Simenon.

MSP— E queria traduzir mais, tanto os Maigret como os outros. A Relógio d’Água começou a fazê-lo há pouco tempo, mas depois a publicação interrompeu-se, ou espaçou-se muito, oxalá seja continuada ainda que a outro ritmo. Sim, gostava muito de traduzir um pouco mais de Simenon. Há traduções antigas, algumas boas, muito boas até, outras péssimas, em que nós temos de reconstituir o francês para saber porque é que o parquet, que é a ‘acusação pública’, se transforma em ‘sobrado’, ‘soalho de tacos’, ou outra coisa parecida… Mas o Simenon é um grande autor. O Steiner diz que é, talvez, o maior romancista do século XX. Diz isso também com um grão de sal, mas depois cita um ou dois parágrafos de uma entrada do Maigret em Paris e, de facto, está lá tudo. Incrível! O Simenon devia ser traduzido cuidadosamente e nem sempre o tem sido. E, sobretudo, as traduções mais recentes não são tão boas. Não, as piores não são as mais recentes, há ali umas nos anos 70 ou 80 que são intragáveis. Depois há outras que são mais ou menos corretas, mas traduzir Simenon exige traduzir atmosferas e traduzir o tempo, porque muitas vezes a história passa-se nos anos 20, 30, 40 ou 50 e todo esse clima, que varia de década para década, escapa muitas vezes aos tradutores que o têm traduzido mais recentemente.

FJV— Sendo que há uma diferença entre o Simenon da primeira fase do Maigret, do Pietr Letton, e o Simenon do Carrefour e de Vichy. Ele mudou.

MSP— Sim, ele mudou a maneira de contar e até o próprio Maigret. Deixa de haver pistolas e murros. Nos primeiros, ainda há aquele elemento do romance policial, do típico puxar do revólver, o Janvier puxa não sei quando, não sei de quê. Mas é verdade, há uma evolução muito nítida. O Maigret e o seu autor foram ganhando em graça e sabedoria com a idade, embora os primeiros romances, com o Pietr Letton, tenham, de facto, uma densidade atmosférica que é típica do Simenon: independentemente da história, ou aliado com a história, transmite atmosferas.

FJV— E são fortes!

MSP— E são fortes! E é através da atmosfera que o policial se deslinda. Há um romance, que já não sei qual é, em que ele está a ensinar um inspetor mais novo, que lhe pergunta: “Mas como é que deduz?” E ele diz: “Eu nunca deduzo! (Je ne déduis jamais!). Não, ele imerge, mergulha naqueles ambientes.

FJV— Mas esse é o método Maigret. Há uma das histórias que é de um crime na Holanda, em que ele vai para a Holanda, não conhece absolutamente nada do cenário, olha para as pessoas— e nós sabemos que ele vai escolher o criminoso, logo no primeiro momento.

MSP— E nem sequer fala holandês…

(Risos)

FJV— Mas, por exemplo, há outro dos casos, que é um do período clássico americano, Rex Stout, em que, nas novas traduções, Archie Goodwin e Nero Wolfe tratam-se por “tu”, o que é um pouco escandaloso. Fica aqui o protesto lavrado. E, para terminar, queria perguntar-lhes quais eram os livros que gostavam de traduzir. O Miguel já levantou um pouco a ponta do véu. Falou do Merleau-Ponty.

MSP— Gostava muito de traduzir algumas coisas também do Simenon, não digo a obra toda, porque é desigual, mas tem coisas muito boas. E, em parte por um diálogo, uma troca de correspondência que tenho tido com a Ana Teresa Pereira, gostava de traduzir o Dickson Carr.

FJV— Ah, o Dickson Carr, muito bom! Fantástico, o Dickson Carr.

MSP— Porque há traduções muito boas, antigas, mas as últimas que saíram são ilegíveis, não se conseguem pura e simplesmente ler. E há muitas coisas importantes dele que não foram traduzidas.

FJV— Mas mesmo as já traduzidas são fantásticas, muito boas! Então, este contraponto Merleau-Ponty, Dickson Carr, que é fantástico… (Risos). Tânia?

TG— Eu traduziria a Jenny Diski, uma escritora britânica que morreu há uns aninhos e tem muitos romances escritos, muitos ensaios, e nós cá só temos Desconhecida num Comboio. Ela tem uma voz muito peculiar, era uma mulher que tinha tudo para se fazer de vítima, que é uma coisa que está muito na moda ultimamente. E ela fazia exatamente o oposto. Era uma mulher muito forte, com um sentido de humor muito sarcástico, que até sobre o cancro conseguiu escrever com uma dignidade e um sentido de humor muito peculiares. Portanto, era uma autora que eu traria para Portugal, sem dúvida. Não percebo porque é que ainda não foi mais traduzida. A Doris Lessing. Não entendo porque é que a Doris Lessing não é mais traduzida, havia algumas traduções…

MSP— Todas elas estão esgotadas.

TG— Nunca mais ninguém falou na Doris Lessing, que é uma autora brilhante. Estou a ver ali um livro da Joan Didion. Temos publicados o Noites Azuis e O Ano do Pensamento Mágico, mais um livro belíssimo, também de uma sobriedade...

FJV— Mas esses estão traduzidos.

TG— Esses estão traduzidos… E o resto? Todos os ensaios da Joan Didion? Ela tem uma produção enorme, e com uma qualidade!

FJV— E, agora, a última pergunta: que autor português gostariam de traduzir e para que língua? Miguel?

TG— Ana Teresa Pereira!

MSP— Francisco José Viegas, também. Sei que tu gostas de Dickson Carr, não te lembras, mas eu ouvi-te uma vez falar disso em Abrantes.

FJV— Gosto muito de Dickson Carr e Carter Dickson.

MSP— E Carter Dickson. Mas há a Ana Teresa Pereira. Dos mais antigos, quer dizer, que seriam da geração dos meus pais, uma autora que eu acho que é escandalosamente esquecida, embora tenha sido reeditada há relativamente pouco tempo, mas que esteve muito tempo esquecida, era a Graça Pina de Morais.

TG— A Maria Ondina Braga. Gosto muito também.

MSP— Há várias. Se calhar, estou à procura de uns que não são evidentes.

TG— Jorge de Sena, que é tão bom.

MSP— Os Contos da Sophia, para já não falar na poesia. A parte de prosa, as Histórias da Terra e do Mar.

TG— A Maria Judite de Carvalho, que finalmente está a ser traduzida para inglês — e que é uma revelação! Li-a muito recentemente — era uma lacuna — e fiquei apaixonada! E senti-me muito orgulhosa quando vi que a Joyce Carol Oates, que é essa sumidade da literatura, escreveu sobre Os Armários Vazios da Maria Judite de Carvalho.

MSP— Nos últimos anos, descobriram um bocado essas mulheres que estavam esquecidas, a Fernanda Botelho também, que o Jorge Silva Melo, nestes últimos anos, antes de morrer, reapresentou nos lançamentos que houve e da qual fez umas leituras muito interessantes. A Natália Nunes. Já para não falar na Graça Pina de Morais e na Maria Judite de Carvalho, de quem a Minotauro — e ainda bem — publicou tudo, tanto quanto se pode publicar tudo. E foi indispensável.

TG— Agora espero que transponha as fronteiras.

FJV— Tânia, mais algum nome?

TG— Quando me pedem listas de nomes, é terrível, porque depois só me lembro quando chego a casa.

MSP— É como eu… E depois pensamos: “Ele, se calhar, ficou zangado porque não falei nele…”. É que há lapsos, e também, lapsos à parte, coisas de que não me lembro. Portanto, o que digo dos livros de que gostei mais, ou de que gosto menos, é o que, ao sabor da nossa conversa, me lembro de dizer num registo de associação imediata, palavra puxa palavra. Noutro momento, ou procurando melhor, não diria tão pouco.

TG— Acho que podemos resumir dizendo que temos muito boa literatura e temos autores muito variados. Alguns caíram no esquecimento e era bom recomeçarmos a lê-los. Por exemplo, o Jorge de Sena, não sei até que ponto ainda se lê Jorge de Sena, o Sinais de Fogo.

FJV— Do Jorge de Sena, está a ser publicada toda a poesia agora.

TG— Mas as novas gerações não sei se conhecem.

MSP— Mas, pensando na tradução para outras línguas, eu diria agora a Maria Velho da Costa, por exemplo.

TG— A Maria Isabel Barreno. Nós temos muito boas autoras.

FJV— Muito bem. Ficam os recados todos dados. E agora vamos sair daqui para folhear estes livros todos à nossa volta. Obrigado, Miguel Serras Pereira, obrigado, Tânia Ganho.

TG— Obrigada.

MSP— Obrigado.

 

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