RESUMO
Ao designer cabe escolher a forma do livro. Para bem escolher a sua forma, é imperativo que o designer conheça o texto, porque só assim lhe poderá dar um corpo e uma cara, seja através do desenho da sua capa (aquilo que será a primeira imagem do livro), da escolha das suas dimensões e materiais (que constituem a estrutura material do livro) ou da forma com que o seu texto aparece ao leitor (através do uso da tipografia). A forma visual e material que o livro adquire sob a sua batuta é reflexo da sua própria interpretação, que é dessa forma transmitida ao novo leitor — é, nesse sentido, uma leitura criativa: que cria um novo objeto. Ao olhar para um texto, quando se prepara para lhe dar uma forma que seja publicável, o designer procura certas deixas que lhe permitam interpretar o texto de uma maneira muito específica, procurando algumas características na sua forma verbal que possam ser transpostas para a sua forma visual. Para o conseguir, ele apoia-se na sua própria leitura, um tipo de leitura especializada que é aqui descrita e explorada.
ABSTRACT
The designer is responsible for choosing the form of the book. In order to do this well, it is imperative that the designer knows the text, because only then can he give it a body and a face, either through the design of its cover (which will be the first image of the book), the choice of its dimensions and materials (which constitute the material structure of the book) or the way in which its text appears to the reader (through the use of typography). The visual and material form that the book acquires under its direction is a reflection of his own interpretation, which is thus transmitted to the new reader — in this sense, it is a creative reading: one that creates a new object. When looking at a text, when preparing to give it a form that is publishable, the designer looks for certain cues that allow him to interpret the text in a very specific way, looking for some characteristics in its verbal form that can be transposed into its form visual. To achieve this, he relies on his own reading, a type of specialized reading that is here described and explored.
PALAVRAS-CHAVE
livro, materialidade do livro, design de comunicação, tipografia
KEYWORDS
book, materiality of the book, communication design, typography
NOTA CURRICULAR
Ana Sabino é doutorada em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde é investigadora. Definindo o seu percurso de forma pluridisciplinar, é também mestre em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e licenciada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Atualmente, dá aulas de Tipografia e de História e Teoria do Design de Comunicação na Escola Superior de Artes Aplicadas, Instituto Politécnico de Castelo Branco.
1. DESIGNER / LEITOR
Sou um designer de livros, e a minha sobrevivência depende [...] da minha habilidade para reconhecer as dicas e didascálias visuais nos textos.
Mendelsund (2014: 334)[1]
Ao designer cabe escolher a forma do livro. O seu papel não é facilmente reconhecido pela população em geral, nem mesmo no caso de leitores assíduos, comummente por um de dois motivos: ou porque o leitor não reconhece de forma imediata que a sua leitura tem um suporte, ficando-lhe a impressão de que o meio através do qual lê é translúcido, ou porque a escolha dessa forma é tida como arbitrária, como se não tivesse sido escolhida por ninguém (falo, sobretudo, do miolo do livro; as capas têm uma atenção diferente). A culpa desta visão distorcida não pode, no entanto, ser totalmente atribuída ao seu possuidor, uma vez que ela é muitas vezes motivada pela factual ausência de intenção na escolha da forma de muitos dos livros que nos rodeiam. Frequentemente, é necessária a observação de livros que são casos particulares — como é o caso daquele que veremos de seguida — para que o leitor se aperceba de que alguém atuou sobre a forma do livro de maneira premeditada. Só depois da observação dessa suposta exceção é que o leitor se apercebe de que, com mais ou menos intencionalidade, o trabalho projetual é a regra.
Para bem escolher a sua forma, é imperativo que o designer conheça o texto, porque só assim ele lhe pode dar um corpo e uma cara, seja através do desenho da sua capa (aquilo que será a primeira imagem do livro), da escolha das suas dimensões e materiais (que constituem a estrutura material do livro) ou da forma com que o seu texto aparece ao leitor (através do uso da tipografia). Para o fazer, o designer precisa, é claro, de conhecer o livro que está a desenhar — ou a coleção de livros, ou o género de livros que está a desenhar. Continuemos este movimento de alargamento de abrangência: digamos que o designer precisa de o ler, ou de o conhecer, ou de estar informado sobre ele, de alguma maneira.
2. LER OU NÃO LER
A questão que se coloca é, então, se o designer precisa de ler o texto, e se efetivamente o faz na sua prática habitual. Existe uma ideia comum de que os designers não leem, de uma forma geral. Esta assunção, como é habitual nos preconceitos generalistas, é verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Sim, podemos reconhecer que há uma razoável quantidade de designers que estão tão absorvidos pelo universo da imagem que se interessam pouco pelo universo verbal. Felizmente, essa não é a regra geral e, sobretudo, não costuma ser o caso dos designers de livros. Ninguém acaba por ser designer de livros sem ter um mínimo interesse pela palavra escrita. Ser designer de livros implica, diria que necessariamente, ser leitor.
Em seguida, destacarei especialmente esta qualidade na designer Elaine Ramos, responsável pelo projeto gráfico do livro apresentado como exemplo. Para o projetar, Elaine leu exemplarmente o texto original. A forma visual e material que o livro adquire sob a sua batuta é reflexo da sua própria interpretação, que é dessa forma transmitida ao novo leitor.[2] Também Elaine defende[3] que, de uma forma geral, o ideal seria que o designer sempre lesse o texto que vai projetar. No entanto, reconhece que as circunstâncias da vida prática muitas vezes não o permitem ou não o exigem, como no caso em que um livro é parte de uma coleção, assim dispensando a sua leitura individual, ou no caso em que o designer é contratado para fazer uma capa e o valor que é pago não permite que seja despendido o tempo necessário para a sua leitura. Outras vezes, infelizmente, não lhe é permitido sequer o acesso ao texto, por razões práticas difíceis de justificar.
Para comprovarmos o carácter exemplar desta sua leitura transformada em objeto será interessante verificar, junto de outros designers, qual é a metodologia de trabalho mais habitual para o desenho de um livro — algo a que podemos ter acesso, por exemplo, no livro On Book Design (Hendel, 1998), no qual o autor convida oito designers seus contemporâneos a partilhar o seu processo criativo. Lendo esses relatos, percebemos que há tendências gerais a apontar, mesmo que o tipo de leitura inicial que os designers fazem seja muito diferente em cada caso. Por vezes, fazem uma leitura rápida, procurando sobretudo a estrutura do texto. Outra vezes, leem o manuscrito até ao ponto em que têm uma ideia, seja porque surgiu o momento eureka, ou porque consideram que leram o suficiente para conhecer o tom do livro. Outras vezes, leem o texto completamente, do início ao fim. Nem sempre a cada designer corresponde um modus operandi próprio, definido à partida e seguido em todos os casos. Um mesmo designer pode ter estas três abordagens em relação a livros diferentes. Uma outra característica que é interessante destacar, observando esta amostra, é que uma quantidade bastante expressiva destes designers é também formada em Letras — três no total dos oito designers tiveram formação formal em Humanidades.
3. LEITURA DE DESIGNER
Observando não só estes exemplos, mas também outros mais informalmente recolhidos, poder-se-ia dizer que a comunidade de designers e tipógrafos de livros criou uma convenção não explícita de leitura. Na sua prática, o designer faz um tipo de leitura que é orientada para um objetivo. A sua leitura é geralmente rápida, procurando certos atributos específicos — tal como a de um investigador, que procura num texto aquilo que identifica como relevante para a sua pesquisa. Ao olhar para um texto, quando se prepara para lhe dar uma forma que seja publicável, o designer procura certas deixas que lhe permitam interpretar o texto de uma forma muito específica, procurando algumas características na sua forma verbal que possam ser transpostas para a sua forma visual. Este método é já parte do seu processo criativo, e aquilo que o designer procura no texto, em cada caso, é necessariamente uma escolha pessoal e particular, porque esta procura condiciona o tipo de resposta que vai dar — e, de forma circular, o tipo de respostas que costuma dar, ou seja, o tipo de características visuais que considera relevante trazer para a forma do livro condiciona também a sua leitura, que será vocacionada para a procura dessas mesmas características. Não falo, de forma alguma, de um tipo de leitura diminuída, mas sim de um tipo de leitura especializada. Está há muito provado que a seletividade na leitura não é um defeito, mas sim uma qualidade típica dos leitores mais eficientes.
Em primeiro lugar, a observação de estilos e estratégias de leitura de Pugh (1975) e Thomas (1976)[4] demonstra que uma simples leitura linear não é típica de leitores eficientes. Pugh relaciona seletividade com eficiência na leitura. O autor lista cinco estratégias de leitores eficientes (definidos como aqueles cujo objetivo é conhecido e que atingem esse objetivo). Três delas são atividades seletivas relacionadas com a localização e tomada de decisão acerca do conteúdo de um texto. De facto, quem escreve sobre proficiência na leitura e estudo frequentemente aconselha a que os estudantes leiam de forma seletiva, pré-visualizando os textos e selecionando determinadas áreas para uma maior atenção (Waller, 1979: 181).[5]
O que é então que o designer — tentando definir um arquétipo de designer — procura, no ato de ler? Para começar, analisa a estrutura do texto ou documento. Ou seja, a sua divisão em partes, em capítulos, em parágrafos, assim como o tipo de continuidade do texto: é composto por frases ou capítulos curtos ou longos? Com muitas ou poucas subdivisões? Existe texto indentado, ou em forma de lista? O que é que separa as várias partes? Elas compõem elementos com sentidos muito distintos entre si, ou são continuações subtis, encerradas de forma discreta? Encabeçando cada nova parte há um título? Uma citação? Qual a quantidade de espaço que essa divisão exige?
Podia pensar-se que a ficção em prosa — o género do livro aqui apresentado — estaria à partida já bem definida em termos desta estrutura textual. Mas ainda há muitas perguntas por responder. Os parágrafos são longos, são curtos, ou uma mistura de ambos? Os diálogos são escritos de forma a interromper o curso do texto? Em que quantidade aparecem? A tendência é que cada escritor tenha a sua voz também no que toca a estes aspetos. Folheando um livro de Saramago — mesmo que, naturalmente, cada um tenha um carácter próprio —, verificamos que os seus parágrafos são tipicamente longos, a pontuação escassa, ganhando assim o texto uma densidade que lhe é característica. Isto importa para o designer porque, por exemplo, esse tipo de prosa mais densa poderia ser compensado com uma paginação mais solta, ou seja, ser-lhe-ia benéfico criar mais espaço entre linhas, margens maiores, um comprimento de linha e de página não demasiado longo. Isto não retiraria ao texto a sua densidade formal verbal, mas melhoraria em grande medida o conforto na leitura.
Observações semelhantes são, aliás, notadas em estudos literários, mesmo que aquilo que é observado na forma do texto não seja habitualmente reconhecido na sua forma visual. Mas os dois tipos de leitura são interdependentes. Este tipo de observação/leitura que o designer faz, procurando aquilo que lhe importa saber, inclui também — não se pense o contrário — ler o texto no sentido mais comum do termo. O designer também deve estar atento ao tom do texto. Da mesma forma, facilmente alguém que esteja habituado a fazer leitura crítica percebe que algumas dessas características saltam à vista graficamente, como seja a repetição de algumas palavras que são usadas com muita frequência, ou a profusão de ‘e’ ou de vírgulas, ou de pontos de exclamação e interrogação. Certamente, um designer de livros não discordará do tipo de leitura que Franco Moretti propõe em Distant Reading (2013) — muito se pode apreender de um livro com uma visão macroscópica que nos revele as suas redundâncias e características recorrentes.
É comum que, ao ler o texto de maneira mais distante, procurando as suas características formais, o designer/leitor pare de vez em quando para ler mais atentamente alguma parte. Não é impossível apercebermo-nos, mesmo que apenas lêssemos distraidamente, quais seriam as cenas mais marcantes numa narrativa; basta que se vá seguindo levemente o enredo, e se pare quando isso se justifica. Estes métodos de leitura, que, como disse, são habitualmente muito pessoais para cada designer e mesmo para cada trabalho, são geralmente uma versão daquilo que é habitualmente denominado, nos estudos sobre a leitura, como skimming e scanning: dois métodos de percorrer o texto procurando as suas características principais.[6]
Se uma leitura, chamemos-lhe assim, estrutural—no sentido de ler a estrutura—é mais necessária para a paginação do livro (ou seja, para o desenho do seu interior), para a capa (ou seja, para o seu exterior) ela é geralmente menos útil, a não ser em casos extraordinários.[7] Para o desenho da capa, cuja expectativa é que cumpra a função de sinédoque do livro, é sem dúvida necessária uma interpretação; o designer tem que ter uma ideia do livro para que essa ideia possa ser transmitida.[8] Em muitos casos, esta ideia é extraída da leitura de sinopses, ou da introdução feita por um editor numa reunião inicial. Mas o que acontece sobretudo nos exemplos atrás mencionados é que o designer faz uma leitura específica que o assiste nessa tarefa. A leitura de designer é um tipo de leitura que ausculta o ambiente de uma narração, e que procura encontrar nela elementos visuais que possam ser transpostos para a materialidade do livro de uma forma interessante.
Invoco a expressão materialidade do livro, em vez de fazer uma mera menção à capa, precisamente porque, no caso do livro que apresento como exemplo - Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, na edição da Cosac Naify (2005) -, não só a capa mas sim o livro como objeto na sua totalidade exigiu e reflete este tipo de leitura. Todos os aspetos da forma deste livro funcionam como a dita sinédoque que esperamos encontrar na capa.
Trata-se de um livro cuja característica mais desconcertante em relação àquilo que esperamos de um livro é o facto de que ele nos chega às mãos totalmente costurado: tanto do lado da lombada como do lado do corte — ou seja, o livro aparece-nos totalmente fechado, exigindo que o descosturemos para o abrir. Quando finalmente abrimos a capa do livro, verificamos então que todas as suas páginas são uma parede — elas estão também fechadas, dobradas sobre si mesmas, como era habitual nos livros não aparados por guilhotina,[9] e impressas no lado de fora com a imagem de uma parede cinzenta. É-nos fornecido um marcador transparente, com o qual devemos então abrir cada uma das páginas, descobrindo o texto no seu interior. Trata-se, portanto, de um livro fechado, de costas voltadas para o leitor, que, de certa forma, parece dizer-nos que preferia não ser lido.
Bartleby, o Escrivão, na edição brasileira da editora Cosac Naify (2005).
4. ELAINE RAMOS, DESIGNER, LEITORA
Elaine Ramos, a designer responsável pelo projeto gráfico deste livro, é formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Profissionalmente, o seu percurso foi sobretudo marcado pela sua carreira na Cosac Naify, onde entrou em 2004 e se manteve, como diretora de arte, até ao encerramento da editora em 2015. Nessa altura, uniu esforços com a então editora geral Florencia Ferrari, e juntas fundaram a editora Ubu, que tem vindo a relançar alguns dos títulos da Cosac Naify que já haviam esgotado, assim como outros títulos inéditos no Brasil, sempre mantendo o rigor editorial e o extremo cuidado com o design e a produção gráfica que já eram habituais na casa onde anteriormente trabalhavam. Dentro da Cosac Naify e, agora, como parte fundamental da Ubu, Elaine não foi apenas designer, mas também foi responsável pela coordenação editorial da área do design: a ela, e ao conselho editorial por si criado, se deve a escolha, edição, compra e tradução de vários títulos relacionados com a teoria, a história e a prática do design. Envolveu-se também na criação ab nihilo de obras de referência para a história e crítica do design, como a Linha do tempo do design gráfico no Brasil (2012), em colaboração com Chico Homem de Melo — um hercúleo levantamento histórico e crítico, e um documento fundamental para a definitiva consolidação da disciplina no seu país. É, desde 2013, membro da Alliance Graphique Internationale (AGI). Juntamente com Celso Longo, Daniel Trench, Fabio Prata e Flávia Nalon, foi responsável pela organização da conferência internacional AGI Open, em 2014, realizada em São Paulo.
Há uma característica do seu percurso pessoal e profissional (aliás comum a outros designers que partilham a sua localização geográfica e temporal) que influencia sem dúvida a sua metodologia processual: o facto de se ter formado na FAU-USP, uma faculdade de arquitetura.[10] Se a narrativa é um passeio pelo tempo, é útil que alguém que vai criar uma forma para essa narrativa saiba mover-se pelo espaço. Moldar um espaço pelo qual atravessará um corpo tem de facto semelhanças com moldar a passagem por uma sequência de palavras, de linhas, de folhas. Além disto, ficou-lhe vincada a preocupação com os materiais, que não se encontra facilmente nos estudantes formados em instituições de ensino de design, onde são sobretudo treinados para dominar duas dimensões. Em entrevista para a AIGA (American Institute of Graphic Arts), Elaine reflete sobre esta sua formação particular: «’Fez-me pensar de forma mais estrutural’, comenta. ‘O meu foco não está apenas na superfície, mas nos materiais, o funcionamento, os processos industriais.’» (Petit, 2018). [11]
A atenção ao processo, ao meio de concretização real de uma ideia, está perfeitamente patente neste livro, onde todos os seus detalhes de produção estão imbuídos no processo criativo. Mas as qualidades projetuais de Elaine não se cingem a esta sua formação, a este seu cuidado com a forma, com a estrutura, com a narrativa, com os materiais e com o processo de produção. Elaine é, antes de tudo, uma excelente leitora. E isso transparece na sua leitura criativa deste livro — no sentido forte, em que é uma leitura que, de facto, cria: cria uma forma, que por sua vez cria novas leituras.
5. LEITURA CRIATIVA
Quando olhamos para este objeto e o lemos na sua totalidade — fazendo tanto uma leitura verbal como visual, identificamos prontamente o enorme talento da designer como leitora, e como leitora ativa, participativa: ela foi capaz de, com papel, tinta, impressão e acabamentos, acompanhar esta narrativa nos seus detalhes mais interessantes. Fê-lo, por um lado, de maneira a não estragar a surpresa do leitor e, por outro, conseguindo ser extremamente rigorosa em relação a certos aspetos importantes na interpretação deste texto.
Claramente, a designer não só leu todo o texto como refletiu sobre ele, deixou que ele ressoasse em si, de forma a poder reemiti-lo. A totalidade do texto está refletida na totalidade da sua forma. Mesmo assim, é possível identificar alguns pontos específicos em que a relação entre o texto e a sua forma é mais direta e evidente, ou os momentos do texto que acenderam a faísca do processo criativo. Não seria necessário, uma vez que o importante é sobretudo a atmosfera, e não alguma pista em concreto acerca do texto, mas podemos fazer o exercício de ir reconhecendo as passagens de onde foram retirados cada um dos elementos gráficos que compõem este livro.
A parede que está impressa do princípio ao fim das suas páginas é uma representação da vista que se pode ter da janela ao lado de Bartleby, ela mesma tendo uma presença opressora, que corta a possibilidade de qualquer alongamento do olhar:
O meu escritório ficava no andar de cima da Wall Street, nº ***. […] Naquela direção, minhas janelas comandavam uma visão desobstruída de uma parede alta de tijolos escurecida pelos anos e pela sombra permanente. A beleza oculta da parede não precisava de lentes de aumento para ser vista, pois, para o benefício das pessoas míopes, ficava a uns três metros da janela. (Melville, 2005: 2)
O verde da capa é, também ele, um reflexo da descrição do ambiente que envolve o protagonista, o biombo que o separa dos restantes ocupantes do escritório. Nesta descrição, volta a ressaltar a janela para a parede opressiva, uma presença repetida tanto no texto como na sua apresentação gráfica:
Coloquei a sua mesa perto de uma janela pequena nesta parte da sala, uma janela que […] já não oferecia qualquer vista, embora filtrasse alguma luz. Havia uma parede a um metro da janela, e a luz vinha de cima […]. De modo que a arrumação ficasse ainda mais satisfatória, coloquei um biombo verde para separar-me de Bartleby, mas que não o deixava fora do alcance da minha voz. Assim, até certo ponto, a privacidade e o convívio se combinavam. (Melville, 2005: 7–8)
Depois de ler esta passagem, dificilmente se imaginaria uma melhor cor do que o verde para esta capa — sendo a capa aquilo que nos separa de Bartleby, o livro, e nos permite tanto entrar nele, como manter a privacidade. Não só o verde, mas também a sua textura granular, que lembra a de um tecido espesso, e a estrutura forte, que não chega a ser a de uma capa dura, mas que mantém a sua forma inerte, como um biombo, parecem ser as escolhas mais adequadas para este livro, como se elas fossem simplesmente naturais — o que é tantas vezes uma clara indicação de sucesso num projeto gráfico.
Volto a referir, como foi dito atrás, que o facto de ser preciso cortar as páginas para as chegar a ler está ligado à apatia de Bartleby, à sua negatividade e recusa em participar naquilo que lhe é pedido. Tal como Bartleby se recusa a realizar qualquer tarefa, também o livro se recusa a ser lido. Resta mencionar ainda a opção por distinguir o último caderno, que contém o texto crítico de Modesto Carone. Nesse caso, não precisamos de abrir as páginas uma a uma; exatamente porque isso seria um artifício desprovido de sentido. Todos os detalhes são significativos.
O mérito dessa qualidade superior, no entanto, não pode ser atribuído exclusivamente à designer, mas deve-se também ao contexto em que o livro foi criado.[12] A editora que concedeu à designer o tempo necessário para esta leitura, para o desenvolvimento deste projeto, e a possibilidade da sua materialização merece sem dúvida uma palavra de reconhecimento e aplauso. Na entrevista anteriormente referida (Petit, 2018), o jornalista refere que todos os impedimentos foram removidos, para a execução do projeto de Bartleby.[13] Refere-se provavelmente aos impedimentos financeiros que habitualmente são colocados quando os designers pretendem ser criativos com os processos de produção, e colocá-los ao serviço do design, fugindo um pouco do trabalho estandardizado na indústria gráfica. Só esta carta branca[14] é que permite que não apenas este livro, mas toda a coleção que ele integra — a Coleção Particular — tenha esta estreita ligação entre forma e conteúdo que os coloca em destaque.[15]
A manutenção da maior parte das características na transferência da edição da Cosac Naify para a editora Ubu confirma aquilo que, neste livro, é essencial: o papel da capa mantém-se da mesma cor, precisamente porque este papel verde, com uma textura especial, como se de um tecido grosso se tratasse, é absolutamente intencional, e não poderia ser de outra forma. A diferença entre as duas edições verifica-se apenas no desenho da capa, em que houve um refinamento da tipografia: na edição mais recente, foi usado apenas um tipo de letra para toda a informação, ao invés dos quatro tipos diferentes da edição anterior, que haviam sido escolhidos para fazer uma citação histórica. Isso conferia à capa um ar antigo que Elaine Ramos quis mais tarde atualizar, escolhendo um tipo de letra que funcionasse bem num tamanho maior, ou seja, que tivesse um maior nível de detalhe tipográfico, e que contém no seu desenho referências ao trabalho simultaneamente manual e mecânico de um escrivão. Este refinamento da tipografia usada na capa, levado a cabo depois de muitos anos e várias edições, sublinha a importância do tempo que é dado a um projeto gráfico para que ele se possa consolidar e encontrar a forma certa, a boa forma, algo que, como designer além de autora, gostaria de sublinhar.
Bartleby, o Escrivão, na edição atualizada da editora Ubu (2017).
FINANCIAMENTO
Este artigo baseia-se em parte na tese de doutoramento «Instruções de leitura: um estudo sobre convenções gráficas de apresentação da palavra escrita» (2020), entregue na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, financiada pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia.
REFERÊNCIAS
Hendel, Richard (1998). On Book Design. Yale University Press.
Mantzaris, Thomas (2018). “Visual Literature in the 21st Century: An Interview with Anna Gerber”. MatLit: Revista do Programa de Doutoramento em Materialidades da Literatura 6 (1): 211–19. https://impactum-journals.uc.pt/matlit/article/view/5866.
Maxwell, Martha J. (1970). “The Value of Skimming and Scanning in Studying Science Textbooks”. Journal of the Reading Specialist 9 (3): 116–17.
Melville, Herman (2005). Bartleby, o Escrivão. Modesto Carone (trad.). Coleção Particular. Cosac Naify.
Mendelsund, Peter (2014). What We See When We Read. Vintage.
Moretti, Franco (2013). Distant Reading. Verso.
Petit, Zachary (2018). “Train as an Architect, Work as a Book Designer [Entrevista com Elaine Ramos].” AIGA Eye on Design. https://eyeondesign.aiga.org/train-as-an-architect-work-as-a-book-designer/?mc_cid=18538bc3ab&mc_eid=4f842e8df2.
Sabino, Ana (2015). “O Tipógrafo como Crítico Literário.” 6.º Encontro de Tipografia: Livro de Atas, 139–48. Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.
Waller, Robert (1979). “Typographic Access Structures for Educational Texts.” Processing of Visible Language, P. A. Kolers (ed.), 175–87. Plenum.
NOTAS
[1] Tradução livre. No original: «I am a book designer, and my livelihood depends [...] on my ability to recognize the visual cues and prompts in texts.» (Mendelsund, 2014: 334).
[2] Para uma perspetiva mais geral sobre este assunto, ver também Ana Sabino, «O tipógrafo como crítico literário» (2015). In 6.º Encontro de Tipografia: Livro de Atas, 139–48. Instituto Politécnico do Cávado e do Ave.
[3] Em comunicação pessoal, a 22 de agosto de 2019.
[4] O autor cita A. K. Pugh, «The development of silent reading.» In W. Latham (ed.), The road to effective reading. Ward Lock (1975), e L. Thomas, The self-organised learner and the printed word. Centre for the Study of Human Learning, BruneI University (1976).
[5] Tradução livre. No original: «First, observation of reading styles and strategies by Pugh (1975) and Thomas (1976) shows that a straight-through linear strategy is not typical of efficient readers. Pugh links se-lectivity with reading efficiency. He lists five strategies of efficient readers (defined as those whose purpose is known and who achieve that purpose). Three of them are selective activities concerned with locating and making decisions about the content of a text. Indeed, writers on reading and study skills commonly recommend that students read in a selective fashion, previewing texts by scanning ahead and selecting particular areas for special attention.» (Waller, 1979: 181).
[6] «Skimming involves searching for the main ideas by reading the first and last paragraphs, noting topic headings and other organizational cues — such as summaries — used by the author. Scanning involves running your eyes down the page looking for specific facts or key words and phrases.» (Maxwell, 1970: 116).
[7] Veja-se, como exemplo de um caso em que essa leitura dá o mote para a capa, Comentário à Constituição Portuguesa (Coimbra, Almedina, 2008; design FBA/Ana Sabino), em que a profusão de pontuação que popula este tipo de texto legal foi trazida para a capa, onde, a par de um design escorreito, veio solucionar uma capa difícil, que exigia a aprovação de vários autores.
[8] Um estudo interessante que aborda especificamente o tema da capa do livro é a tese de doutoramento de Ana Boavida: Tema de Capa: capas de livros e design gráfico em Portugal 1940–1970, Universidade de Coimbra, 2019.
[9] Na verdade, o processo habitual de encadernação de um livro faz com que, antes de ser aparado, ele apresente apenas algumas folhas dobradas e outras naturalmente abertas, resultando da dobra de cada plano de impressão em páginas. Para conseguir este resultado, em que todas as páginas se apresentariam dobradas, teve de ser descoberto e empregue um outro método de encadernação.
[10] Outros designers paulistanos partilham a mesma formação, uma vez que a FAU-USP foi, na geração de Elaine, a escola de design possível, já que não existia ainda formação específica em design — os outros designers brasileiros pertencentes à AGI, que acabo de citar, são disso exemplo. Ainda hoje é uma das melhores escolas de design, já que essa multidisciplinaridade continua a ser assumida e cultivada. Por exemplo, Paulo André Chagas, também designer na Cosac Naify, formou-se na FAU-USP em 2006, entregando como TFG (trabalho final de graduação) o tipo de letra Nassau, que usou mais tarde, não só mas também, para compor os livros de Valter Hugo Mãe editados pela Cosac Naify. Paulo prossegue hoje o seu trabalho como designer no estúdio Bloco Gráfico (que fundou juntamente com Gabriela Castro e Gustavo Marchetti, também ex-Cosac Naify), onde continuam a projetar livros com especial esmero tipográfico.
[11] Tradução livre. No original: «“It made me think more structurally,” she says. “My focus is not only at the surface, but at the materials, the functioning, the industrial processes.”» (Petit, 2018).
[12] Como, aliás, é o caso em todos os trabalhos de design, nisto se diferenciando o designer do artista — o seu trabalho é a resposta a uma série de problemas, de pedidos e de condicionantes, sendo que o resultado final não é apenas fruto da intenção do designer/autor mas sim da soma de todas estas intervenções coletivas.
[13] For Herman Melville’s (other) classic work, Bartleby, the Scrivener, “The idea was making an edition with a very tight connection between form and content,” Ramos says. So Cosac Naify decided to pull out all the stops. (Petit, 2018).
[14] Importa ressalvar que essa carta branca não significa dizer que se possa ignorar o custo de produção de um livro, nem mesmo nesta editora, claramente um projeto de paixão dos fundadores Charles Cosac e Michael Naify. Mas seria dizer pouco dos brilhantes profissionais que a integraram se não se fizesse notar que mesmo estes livros que têm uma maior liberdade na produção gráfica «fecham a planilha» — ou seja, o seu custo fica dentro de um limite que é previsto e viável. Para isto, muito contribuiu a existência de um departamento de produção gráfica, adjunto ao departamento de design, onde duas produtoras gráficas (Aline Valli e Lilia Goes) faziam a comunicação com as gráficas, procurando os melhores preços, indagando sobre processos, e trazendo possibilidades tecnológicas que podiam ser utilizadas criativamente pelos designers.
[15] Um outro bom exemplo de editora que tem este tipo de preocupações é a Visual Editions, fundada em Londres em 2010. Remeto para a entrevista com Anna Gerber, sua fundadora, publicada na revista MatLit (Mantzaris, 2018).