RESUMO
O presente artigo propõe-se desenvolver uma reflexão sobre a importância da leitura de traduções no contexto do ensino da tradução literária. A partir da nossa experiência como docentes das cadeiras de Tradução de Textos Literários de Alemão e de Francês, na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, procuraremos argumentar que a leitura crítica e comparativa de traduções publicadas quer em língua portuguesa (língua de chegada) quer noutras línguas é essencial para a formação de tradutores literários. Em contraponto a uma imagem da tradução literária como um exercício solitário de trabalho exclusivo com os textos originais, as autoras elaboraram um programa da cadeira que assenta na leitura de traduções com os seguintes objetivos didáticos: estudar os marcos da História da Literatura que contribuem para a configuração das línguas literárias alemão e francês; formar tradutores conscientes da função do paratexto em literatura traduzida, promovendo assim a literacia paratextual; educar tradutores eticamente responsáveis (pelo contacto com boas práticas) e informados dos seus direitos e obrigações; formar leitores de tradução sensíveis aos diferentes estilos de tradutor/tradução. O programa das disciplinas está organizado em quatro módulos: a figura do tradutor literário, história da literatura, paratextos em tradução e prática da tradução. Espera-se, assim, que, ao longo do semestre, os alunos criem hábitos de leitura em literatura traduzida e desenvolvam uma conceção própria estética e ética do que é a tradução literária do alemão e do francês para o português, que, por sua vez, deverá guiar a produção das suas traduções.
ABSTRACT
This paper aims to reflect on the role and importance of reading translations in the context of the subject of literary translation. Based on our experience as teachers of Translation of Literary Texts from German and French at the School of Human Sciences at Universidade Católica Portuguesa, we will argue that the critical and comparative reading of translations published both in Portuguese (the target language) and in other languages is essential for the training of literary translators. In contrast to an image of translation as solitary work in which translators only engage with original texts, we have elaborated a syllabus which draws on the reading of translations with the following learning objectives: to study the milestones in the History of Literature that have contributed to the shaping of German and French as literary languages; to raise students’ awareness of the functions of paratexts in translated literature, thus promoting paratextual literacy; to educate translators to be ethically responsible (through good practices) and informed of their rights and obligations; to train students’ sensibility to different translator and translation styles. The syllabi are organized into four modules: the figure of the literary translator, history of literature, paratexts in translation, and translation practice. Throughout the semester, students are expected to develop reading habits in translated literature and create their own aesthetic and ethical conception of what literary translation from German and French into Portuguese is/should be. This conception, in turn, shall guide students in their translation practice.
PALAVRAS-CHAVE
didática da tradução, leitura crítica da tradução literária, história da língua literária, estilo e ética do tradutor literário, literacia (para)textual em tradução
KEYWORDS
translation training, critical reading of literary translations, history of literary languages, style and ethics of the literary translator, (para)textual literacy in translation
NOTAS CURRICULARES
Rita Bueno Maia é professora auxiliar na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. As suas áreas de investigação incluem História da Tradução,Tradução e Exílio e Tradução Indireta. Encontra-se a investigar a tradução da prosa de Voltaire em exílio português. Como tradutora literária, publicou recentemente traduções de dramaturgia argentina contemporânea. Publicações recentes incluem: Maia, R. B. (2021). "The Picaresque Novel as Eclectic Translation: Constructing Heteroglossia". Iberian and Translation Studies: Literary Contact Zones. Liverpool University Press. e Pieta, H, Maia, R.B. & Torres-Simón, E. (2022) Indirect Translation Explained. Routledge.
Joana Moura é professora auxiliar convidada na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. As suas áreas de investigação incluem Tradução e Paratexto, Tradutores Ficcionais e Genetic Translation Studies. Encontra-se a investigar a ficcionalização de tradução e multilinguismo em autores contemporâneos de língua alemã. Publicações recentes incluem: Nunes, A., Moura, J. & Pinto, M.P. (eds) (2021) Genetic Translation Studies: Conflict and Collaboration in Liminal Spaces. Bloomsbury. e Faria, D., Pinto, M.P. & Moura, J. (eds) (2022). Reframing Translators, Translators as Reframers. Routledge.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo descrever uma proposta didática que assenta na importância da leitura de traduções para a formação de tradutores literários. As atividades que aqui se vão apresentar foram postas em prática e aperfeiçoadas no âmbito das cadeiras de Tradução de Textos Literários (alemão) e de Tradução de Textos Literários (francês) na licenciatura em Línguas Estrangeiras Aplicadas da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, durante os anos letivos de 2020-2021 e 2021-2022. O programa destas disciplinas organiza-se em torno de quatro grandes eixos, a saber: marcos na história da literatura em língua alemã e francesa, paratexto em tradução literária, ética do tradutor e da tradução literária, e o tradutor literário como contador de histórias.
Neste artigo, pretendemos desenvolver cada um destes eixos procurando explicitar a relevância que a leitura de traduções anteriores pode ter no ensino da tradução literária. Espera-se concretamente que, ao longo do semestre, os alunos criem hábitos de leitura em literatura traduzida e desenvolvam uma conceção própria estética e ética do que é a tradução literária do alemão e do francês para o português, que, por sua vez, deverá guiar a produção das suas traduções.
Contrariamente a uma ideia pós-romântica do tradutor literário como uma figura que trabalha num ambiente solitário e usando como única fonte textual a obra literária original, a nossa proposta tenta desconstruir esta imagem dominante de tradução literária, procurando concebê-la como uma atividade colaborativa e dialogante entre diferentes agentes e textos. No entanto, estamos conscientes de que treinar o alargamento de fontes utilizadas no processo de tradução implica também educar os alunos para os limites legais e éticos da prática da tradução literária.
Da mesma forma que damos ênfase quer à leitura de traduções quer ao seu uso responsável e crítico pelo tradutor literário, também as disciplinas aqui focadas procuram treinar de forma aturada a competência tradutória mediante a prática da tradução de textos literários. Assim, alguns dos textos de partida em alemão e francês estão a ser traduzidos para português pelos nossos alunos pela primeira vez. No entanto, a discussão das atividades relativas à prática da tradução nas cadeiras de Tradução de Textos Literários (alemão e francês) estão para além do escopo do presente artigo, que é dedicado à reflexão sobre o lugar da leitura de traduções literárias na formação de tradutores de literatura.
1. Marcos na história da literatura
As disciplinas de Tradução Literária têm como objetivo expresso que os alunos contactem com a história do alemão e do francês como línguas literárias, mediante a análise de um corpus de obras canónicas da História da Literatura, bem como a produção de investigação sobre a tradução destas obras em Portugal.
O método adotado para a prossecução deste objetivo foi informado, particularmente, por três textos teóricos. Por um lado, “Sobre os diferentes métodos de traduzir” (1813) de Friedrich Schleiermacher, que os alunos (que se encontram a frequentar o 3.º ano) terão lido na cadeira de História e Teorias da Tradução (1.º ano). Neste texto, Schleiermacher advoga pela produção de traduções literárias que proporcionem aos seus leitores uma experiência de estranhamento. Em concreto, propõe-se que as traduções de literatura, ao invés de soarem naturais na língua de chegada, apresentem marcas da língua original.
Nesta linha, os alunos foram convidados a ler o texto de Antoine Berman “La traduction comme épreuve de l’étranger” (1985), em que se defende que a tradução é sempre um espaço de encontro onde é posta à prova a capacidade da língua para a qual se traduz de aceitar ou silenciar o outro. No seguimento deste argumento, todas as estratégias de tradução que procuram formular um texto traduzido como fluente, sem marcas de outras línguas, epistemologias ou culturas são, segundo Berman, deformações.
A terceira fonte teórica que informou a nossa proposta (apesar de não constar da bibliografia obrigatória dos alunos) é a obra de Pascale Casanova A república mundial das letras (2002). Neste estudo, a autora informa sobre (a) o poder desigual das línguas literárias, (b) o peso do cânone literário - o número de obras de uma determinada língua declaradas como clássicos universais - na balança do poder das línguas e (c) o papel da tradução na canonização de obras literárias. A propósito de (b), a autora relembra que as línguas literárias são frequentemente referidas em associação aos seus escritores mais canónicos: “a língua de Racine”, a “língua de Shakespeare”, entre outras (Casanova, 2002, p.33).
A partir destas três fontes, foi proposto aos alunos desenvolverem um trabalho em grupo sobre uma obra canónica da Literatura Alemã ou Francesa. No âmbito da cadeira de Tradução de Textos Literários (francês), os alunos começaram por estudar em aula quatro marcos da História da Literatura Francesa. Os marcos selecionados foram: a peça de teatro de Molière L’avare (1668), o conto filosófico de Voltaire Candide ou l’Optimisme (1759), a novela fantástica de Guy de Maupassant Le Horla (1887) e a história (pseudo-)infantil de Antoine de Saint-Exupéry Le petit prince (1943). Após uma primeira contextualização das obras, os alunos concentraram-se num fragmento de cada obra e interpretaram-no, primeiro, como texto literário e, depois, como texto de partida (isto é, visando já a sua tradução).
Após o trabalho em aula, os alunos selecionaram um dos quatro marcos para preparar o seu trabalho escrito final, que deve organizar-se em três secções. A primeira consiste no levantamento e descrição das traduções, isto é, os alunos devem fazer o levantamento exaustivo (tanto quanto possível) das traduções publicadas em português da obra clássica em análise. Deste levantamento inicial, os alunos devem selecionar duas traduções, fazer uma análise dos seus paratextos e apresentar sucintamente os tradutores responsáveis pelos textos de chegada. A segunda secção é dedicada à crítica de tradução. Nesta etapa, os alunos devem ler o fragmento estudado em aula em versão traduzida pelos/nos dois textos de chegada selecionados e redigir um comentário às traduções, identificando perdas e ganhos e explicitando a sua posição crítica face às opções tomadas pelos tradutores. A crítica às traduções deve dialogar com o texto de Antoine Berman acima mencionado. A terceira e última secção é dedicada à prática da tradução. Os alunos devem propor uma nova tradução do excerto em estudo e refletir, num comentário breve, sobre a forma como a leitura de traduções anteriores contribuiu para a proposta de tradução agora apresentada. Este último comentário irá dialogar com a problematização desenvolvida sobre o uso eticamente responsável e legal de traduções anteriores (veja-se 3).
Mediante este trabalho de investigação e leitura de traduções anteriores, espera-se que os alunos, primeiramente, contactem com a forma como tradutores anteriores terão negociado as diferentes (e, por vezes, opostas) exigências que traduzir um clássico acarreta. Entre estas contam-se, por um lado, o respeito perante um texto e um autor que, consagrados pela História, parecem exigir uma tradução escorreita, correta e até didática; por outro, a consciência informada por Schleiermacher e Berman de que uma tradução legível e explicativa é sempre também não-hospitaleira e deformadora.
Espera-se ainda, na senda de Casanova, que os alunos conheçam e reflitam sobre (a) a diferença do poder do alemão e do francês como línguas literárias em comparação com o português e a forma como este desequilíbrio participa no ato da tradução; (b) o conjunto de obras que em alemão e francês se consideram como “os clássicos” e como ser tradutor destas línguas literárias é ser competente também na “língua de Molière” ou na “língua de Thomas Mann”; e (c) como, em Portugal, as traduções constroem, renovam e modificam os cânones alemão e francês.
2. Paratexto em tradução literária
A proposta pedagógica desenvolvida para as disciplinas de Tradução de Textos Literários (alemão e francês) visa também apresentar aos alunos o conceito de paratexto formulado por Gérard Genette em 1987 na sua obra Seuils, convidando-os a pensar as diferentes histórias que o paratexto, em particular o paratexto em literatura traduzida, conta aos leitores de textos literários numa determinada cultura de chegada. As orientações didáticas concebidas em torno deste tópico curricular têm como objetivo principal formar tradutores conscientes das várias funções do paratexto em tradução literária, para que os alunos sejam não só capazes de ler o paratexto de forma competente, mas também de perceber em que medida é que os diferentes elementos paratextuais podem interferir na leitura de um texto literário (traduzido ou não traduzido). Assim, com o intuito de promover as competências tradutórias dos alunos através da literacia paratextual, as atividades propostas para esta(s) cadeira(s) de tradução literária concentram-se em duas funções específicas do paratexto.
Em primeiro lugar, pretende-se estudar como o paratexto influencia e conduz tanto a experiência do leitor individual do texto literário como, de forma mais genérica, a receção de obras literárias numa determinada cultura de chegada; importa aqui sublinhar que esta é também uma oportunidade para discorrer sobre os vários agentes de tradução (tradutores, revisores, editores, entre outros) que participam na criação do paratexto (para além do texto) e influenciam assim a receção e circulação do texto literário.
Em segundo lugar, afigura-se crucial que os alunos reflitam sobre a função do paratexto enquanto espaço privilegiado para a construção da voz do tradutor, já que este participa de forma decisiva no processo de (re)criação do texto literário. Através de elementos paratextuais como o prefácio, o posfácio ou a nota de rodapé (de tradutor), a presença do tradutor torna-se evidente no texto traduzido, e o leitor poderá dar-se conta da dimensão criativa da tradução. Chamando a atenção para a ideia de que o paratexto oferece ao leitor (mais) uma história sobre o processo de tradução, Alexandra Lopes comenta que o paratexto se situa precisamente “no coração do texto, uma vez que constitui o lugar de uma segunda narrativa e evidencia uma nova agência de autoridade no texto escrito: o tradutor” (Lopes, 2012, pg.130, ênfase no original).[1]
No âmbito da cadeira de Tradução de Textos Literários (alemão) no ano letivo 2021-2022, a abordagem utilizada começou com uma tentativa de estabelecer os limites entre os conceitos de “texto” e “paratexto”, que se revelou um exercício muito produtivo para os alunos na medida em que lhes permitiu refletir criticamente sobre o que constitui (ou não) o texto literário e desconstruir idealizações do texto literário como mero resultado do trabalho solitário do autor. Se, por um lado, o paratexto é muitas vezes relegado para um lugar fora do texto, não fazendo assim oficialmente parte do texto, por outro lado, o paratexto também “constitui o espaço liminar (o texto que está dentro/fora do texto e que discute o texto) que simplesmente não pode ser ignorado” (Lopes, 2012, pg.130, ênfase no original).[2]
Num segundo momento, os alunos realizaram uma leitura comparativa da obra de literatura infantil originalmente redigida em língua alemã Der Struwwelpeter de Heinrich Hoffmann e da versão portuguesa Pedro Esgrouviado, traduzida por Lydia San Payo de Lemos, refletindo precisamente sobre a importância das ilustrações para uma leitura informada do texto e sobre o lugar destas enquanto elemento paratextual que se situa entre texto e paratexto. Ao desempenhar esta tarefa, foi necessário pensar não só nas implicações teóricas do paratexto enquanto conceito limite, mas também nas dificuldades práticas que isso lhes colocou ao traduzir excertos desse mesmo texto de alemão para português.
Ainda na disciplina de Tradução de Textos Literários (alemão), mas, desta feita, no ano letivo 2020-2021, os alunos aperfeiçoaram a sua literacia paratextual através da leitura comparativa do paratexto de duas edições publicadas em língua portuguesa da obra Die Verwandlung de Franz Kafka, nomeadamente (a) a edição de 1996, na tradução de Gabriela Fragoso, com prefácio de Helena Topa, pela Editorial Presença, e (b) a edição de 2005, na tradução de Isabel Castro Silva, com a tradução do prefácio de Vladimir Nabokov, pela Relógio D’Água, ambas intituladas A Metamorfose. Este exercício de cotejo permitiu aos alunos tecer considerações sobre as várias dimensões das duas traduções publicadas, das quais destacamos aqui apenas as duas mais relevantes no presente contexto.
Por um lado, discutiram-se as estratégias editoriais detetadas pelos alunos ao analisar as capas dos dois livros e a escolha de prefácio das diferentes edições, o que os levou à identificação de diferentes públicos-alvo para estas traduções. Por outro lado, após uma leitura atenta de um excerto da obra em ambas as edições, examinaram-se também as notas de rodapé das duas traduções, com vista a refletir sobre a utilização responsável da nota de rodapé pelo tradutor e sobre a forma como o tradutor se posiciona em relação ao texto que se propôs traduzir.
Elencam-se aqui algumas das questões debatidas em aula sobre esta temática: (a) para que servem (e para que não devem servir) as notas de rodapé do tradutor? (b) a quem se dirigem as notas de rodapé do tradutor? (c) as notas de rodapé são sempre para o benefício do leitor ou podem beneficiar o tradutor? (d) as notas de rodapé são (sempre) um sinal da fragilidade do tradutor, i.e. da sua incapacidade de traduzir determinada palavra ou frase?
Ainda sobre notas de rodapé, a nossa proposta pedagógica contempla que os alunos se possam auxiliar, na prática da tradução literária, das categorias concebidas por Alexandra Lopes (2012) no ensaio acima referido. A autora identifica uma tipologia do tradutor literário, com base numa análise acerca de determinados usos de notas de rodapé em traduções de literatura: o tradutor como enciclopédia, o tradutor irreverente, o tradutor erudito, o tradutor entusiasta e o tradutor sacerdote.
3. Ética do tradutor e da tradução literária
Neste passo, queremos discutir a forma como a leitura de traduções, agora realizadas por sistemas de tradução automática online, podem contribuir para educar tradutores eticamente responsáveis e informados dos seus direitos e obrigações.
A proposta pedagógica que desenvolvemos desenrolou-se em três etapas. A primeira consistiu na leitura e interpretação de um conto original que conta a história ficcional de um tradutor literário em diálogo com os princípios enunciados no código deontológico dos tradutores literários. Na segunda, propôs-se que os alunos traduzissem este conto para português e sugeriu-se que lessem comparativamente a tradução realizada com a versão executada pelo motor de tradução automática neural DeepL.
O texto selecionado para este módulo foi o conto de Claude Bleton “Les nègres du traducteur” (1997). Bleton conta a história de um tradutor literário espanhol-francês que, devido a uma megalómana sede de fama e dinheiro, toma progressivamente o lugar dos autores no processo de tradução até ao ponto de os matar (efetiva e/ou metaforicamente). Isto é, por não querer depender ou esperar pela publicação de um novo original para traduzir, decide começar a escrever primeiro as supostas traduções em francês e a enviar os textos para os autores espanhóis que, assim, se veem obrigados a seguir fielmente a tradução para a escrita do seu “original”. Em suma, o protagonista desta história subverte não só a cadeia original-tradução como também a hierarquia autor-tradutor, tornando os autores que traduz nos seus “nègres”.
A leitura deste conto serviu como ponto de partida para refletir em sala de aula sobre a responsabilidade do tradutor literário. Nomeadamente, procurou-se que os alunos tomassem consciência de que a produção e, ainda em maior medida, a receção da literatura traduzida assentam num pacto de confiança. Tal como explicado por João Ferreira Duarte (2012), o leitor confia que o tradutor irá oferecer de boa fé uma reprodução mais ou menos fiel de um texto literário originalmente escrito noutra língua e isto apesar de esse mesmo leitor - na maioria das vezes - não ter meios para confirmar a relação de intertextualidade e equivalência entre um texto de partida e um texto de chegada. Um exemplo histórico que ilustra o poder outorgado ao tradutor nesta relação de confiança cega é a existência de pseudotraduções, entendidas como textos não-traduzidos apresentados falsamente como traduções e/ou recebidos como sendo traduções (Maia, Pieta & Assis Rosa, 2018, p. 76). No caso do conto de Bleton, os textos franceses criados pelo protagonista podem ser classificados como pseudotraduções, uma vez que, tendo sido escritos originalmente em francês pelo protagonista, eram apresentados falsamente como procedendo da tradução de obras literárias escritas noutra língua.
Conscientes da responsabilidade social que acarreta a tradução literária, os alunos foram convidados a ler o “Código deontológico europeu da profissão de tradutor literário”, desenvolvido pelo CEATL - Conselho Europeu das Associações de Tradutores Literários. Este documento, redigido em 2001, apresenta sete princípios éticos que devem reger a profissão de tradutor literário, que vão desde a obrigação de dominar de forma excelente as línguas de partida e de chegada até ao dever de respeitar a sua classe profissional.
Depois de uma breve leitura e comentário das sete diretivas, os alunos refletiram sobre a seguinte questão: será o tradutor do conto “Les Nègres du Traducteur” eticamente responsável? Os alunos responderam negativamente, justificando a sua resposta pelo facto de o protagonista do conto não respeitar o código deontológico, nomeadamente, a diretriz número 3, que estipula: “O tradutor abstém-se de impor ao pensamento ou à expressão do autor modificações tendenciosas, de amputar ou enriquecer os textos sem o acordo expresso do autor ou dos detentores dos seus direitos.”(CEATL, 2001, p. 79).[3]
A segunda etapa teve lugar quando os alunos já tinham traduzido o conto para português. Antes da leitura e discussão das traduções, a docente chamou a atenção dos alunos para a diretiva número 6 do código deontológico, que determina que “o tradutor literário deve ter um bom conhecimento do direito de autor (...) e assegurar-se de que o seu contrato de tradução respeita o copyright.” (CEATL, 2001, p. 79).[4]
Em seguida, os alunos foram convidados a ler a apresentação do “Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos”, que se apresenta como um aperfeiçoamento da “legislação anterior quanto à gestão de direitos de autor (...) e aos direitos do tradutor quanto à protecção do seu trabalho, em pé de igualdade com os dos autores traduzidos.”
Após esta leitura, os alunos refletiram sobre o facto de a tradução literária assentar no equilíbrio entre a responsabilidade ética de não manipular, acrescentar ou cortar o trabalho do autor e um trabalho criativo que equipara a tradução literária a obras originais. Esta reflexão levou à problematização da pergunta: serão os autores de “Les Nègres du Traducteur” eticamente responsáveis? Mais uma vez, os alunos responderam negativamente, justificando a sua resposta pelo facto de os escritores no conto apresentarem os textos, originalmente escritos pelo tradutor francês, que traduziam depois para o espanhol, como suas obras originais.
Portanto, os autores espanhóis na história “Les Nègres du Traducteur” infringem os direitos de autor, incorrendo em plágio. Para ilustrar esta conclusão, a docente forneceu uma definição possível do que é cometer plágio, tal como é entendido por Jude Caroll (2002, p. 9): "Fazer passar o trabalho de outra pessoa, intencionalmente ou não, por seu, em benefício próprio".[5]
Aqui, os alunos discutiram sobre as formas como os autores do conto terão beneficiado da apresentação das suas traduções como originais.
Depois, trouxe-se à discussão a noção do que é plágio, agora, em tradução. Para tal importou-se a explicação constante do documento “Guidance on Relay Translation” (2006, s.p.), publicado pela Society of Authors (Reino Unido): “Os direitos de autor são violados se a habilidade e o trabalho envolvidos na criação de uma obra (neste caso, a versão traduzida) recaírem substancialmente noutra pessoa (que não o tradutor literário).”[6]
Neste momento, foi disponibilizada aos alunos uma versão do conto realizada por um sistema de tradução automática, tal como o DeepL, propondo-se a seguinte atividade. Os alunos foram convidados a (a) comparar o resultado das suas traduções com o resultado da tradução automática;(b) encontrar erros de tradução e, a partir deles, tentar reconstruir a lógica por detrás destas traduções incompletas e (c) editar a versão realizada pelo sistema de tradução automática.
Finalmente, os alunos refletiram sobre este exercício, tendo como questões orientadoras: a) terei usado esta ferramenta na minha tradução e feito passar o trabalho por meu, em benefício próprio? (b) as soluções de tradução pelo DeepL obedecem a uma interpretação original e rigorosa da história? (c) editar uma versão previamente traduzida por outro agente (humano ou não humano) é tradução literária?
4. O tradutor como contador de histórias
Esta secção apresenta o último eixo temático da nossa proposta didática para a cadeira de tradução literária, que se refere a um entendimento da tarefa do tradutor como contador de histórias. Esta interpretação de traduzir literatura remete diretamente para a ideia de Translation as Storytelling proposta pela tradutora, investigadora e docente em tradução literária na Columbia University Susan Bernofsky. Numa palestra virtual, proferida a 29 de outubro de 2020 e organizada pela American Academy in Berlin, Bernofsky expõe a sua tese de forma simples e inequívoca, propondo um entendimento da tradução literária como um modo de contar histórias, o que, por sua vez, permite ao tradutor conceber e partilhar através da tradução a sua leitura individual de um determinado texto literário.
A proposta de Bernofsky implica dois momentos centrais no trabalho do tradutor literário como contador de histórias. O tradutor é primeiramente um leitor, tal como já havia afirmado Susan Bassnett no seu livro inaugural dos Estudos de Tradução: “O tradutor é, afinal, primeiro um leitor e só depois um escritor, pelo que deve tomar uma posição no processo de leitura” (Bassnett, 2003, p. 132). Daqui se depreende que um tradutor literário deve não só ter um excelente domínio da língua para a qual traduz, neste caso, o português (tal como outros escritores), como também uma forte competência leitora e uma capacidade para uma interpretação original de histórias.
Num segundo momento, de acordo com Bernofsky, o tradutor deve contar uma história que já é sua, na medida em que foi criada pela sua interpretação singular. No entanto, esta conceção de leitura singular não inviabiliza o caráter colaborativo e dialogante da tradução literária segundo Bernofsky. Na verdade, a leitura criativa é condição necessária para o processo colaborativo que é a tradução, uma vez que só a existência de múltiplas versões únicas de uma história permite uma conversa entre traduções.
Na conferência a que os alunos assistiram também em aula, Bernofsky declara-se uma leitora ávida de várias traduções da mesma obra literária. O contacto com estas diferentes leituras (realizadas por outros tradutores), em conjunto com a sua leitura do texto original, motivam-na a retraduzir obras clássicas, já tantas vezes traduzidas, uma vez que cada nova tradução oferece outra história.
A título de exemplo, Bernofksy passa a analisar três casos práticos de traduções da sua autoria de obras escritas em língua alemã: começa com Siddartha, de Hermann Hesse, passando por A metamorfose, de Franz Kafka, e termina com A montanha mágica, de Thomas Mann. No caso da segunda e da terceira obra, Bernovsky explica de forma clara como a sua leitura e, consequentemente, a sua versão é distinta das traduções anteriores.
Relativamente a A metamorfose, a tradutora identifica um tom melodramático risível que procura evidenciar e até exagerar na sua tradução e que resulta num texto substancialmente diferente das leituras anteriormente publicadas. Ao ler A montanha mágica em versão original, Bernofsky identifica uma tendência no romance para o uso de um vocabulário associado às histórias de fadas, que se encontra ausente das traduções anteriores em língua inglesa. Através de um estudo exaustivo da etimologia do léxico de Mann e do uso criativo de opções constantes de outros textos literários, Bernofsky tenta recriar, na sua retradução em língua inglesa, uma história mais mágica de A montanha mágica.
Nas aulas de Tradução de Textos Literários (alemão), os alunos foram convidados a pensar as diferenças entre a leitura que fizeram do texto de Kafka A metamorfose e a proposta que Bernofsky apresenta de interpretar (e traduzir) esta obra à luz de um género melodramático e cómico. A docente apresentou ainda um fragmento de A metamorfose traduzida por Bernofsky, de modo a que os alunos pudessem comparar as opções que tomaram durante o processo de tradução com as escolhas tradutórias de Bernofsky e ainda observar como o conjunto de todas as soluções encontradas pelos vários tradutores, por um lado, obedece e, por outro, constrói a leitura sempre diferente da mesma história pelo tradutor literário.
Por fim, Bernofsky comenta e, assim, informa problemáticas discutidas noutros tópicos da cadeira de tradução literária. Primeiro, esclarece o conceito de retradução como criadora de clássicos em literatura. Bernofsky diz mesmo que os clássicos, tais como, por exemplo, as obras de Hesse, Kafka e Mann, são frequente ou até exageradamente (re)traduzidos, levando por vezes ao desinvestimento na tradução de autores fora do cânone estabelecido. Segundo, pensando no exemplo do título A montanha mágica, de Thomas Mann, vemos o papel do paratexto na construção da história que Susan Bernofsky decide contar na sua tradução: um conto de fadas. Terceiro, não obstante o seu diálogo com as anteriores traduções de um mesmo texto de partida, Bernoksky, de forma responsável, diz tentar ler as histórias contadas pelos anteriores tradutores somente numa etapa já avançada da sua própria tradução, de forma a evitar que a sua leitura do texto clássico seja demasiado influenciada pelas leituras veiculadas pelas diferentes traduções.
Conclusão
Em jeito de coda, queremos dar conta da forma como estes métodos didáticos específicos - assentes na importância da leitura de traduções, do diálogo entre tradutores e textos e colaboração – se materializaram num projeto que surgiu de forma inesperada durante a lecionação destas disciplinas. No decorrer do segundo semestre 2021-2022, mais concretamente no seguimento da invasão da Ucrânia no dia 24 de fevereiro, as docentes consideraram relevante e necessário rever o programa das disciplinas de forma a refletir sobre os trágicos eventos e o lugar das letras nesta injusta guerra.
Tendo em conta a especificidade das competências que treinamos, selecionámos como contributo traduzir para português os comunicados publicados nas páginas do Pen Clube Alemão e do Pen Clube Francês, em que se dão a conhecer as posições destas associações perante o conflito Rússia-Ucrânia e se discute o papel dos escritores como agentes que podem contribuir para a reflexão humanista sobre os eventos e para o empoderamento cultural das vítimas. As três traduções resultantes deste projeto são “O inimigo chama-se Putin, não Puschkin” (Pen Clube Alemão, 2022), “Ucrânia” (Spire, 2022) e “O Pen Clube perante a guerra” (Pen Clube Francês, 2022).
Em linha com uma conceção dialogante e responsável da tradução literária, o método adotado para este projeto foi o da tradução colaborativa. Os alunos foram divididos em grupos e realizaram as seguintes tarefas do processo de tradução: preparação do briefing dos tradutores (o que implica sempre uma leitura cuidada do texto de partida), tradução, revisão, edição e, em geral, a gestão de todo o projeto.
Como tradutores com responsabilidade social, os alunos disponibilizaram em língua portuguesa os comunicados de Poetas, Ensaístas e Novelistas cuja leitura se realizou numa aula aberta, que juntou os alunos de Tradução de Textos Literários (alemão e francês), os alunos de Tradução generalista de Inglês (disciplina que se associou a este projeto colaborativo), outros alunos de Línguas Estrangeiras Aplicadas e ainda contou com a participação da presidente do Pen Clube Português. Foi precisamente esta leitura conjunta e em voz alta das traduções realizadas pelos alunos que encetou uma conversa sobre a tradução como trabalho de equipa, método de compreensão e questionamento de causas prementes e maiores, e ainda como tomada de posição e gesto diferenciador.
FINANCIAMENTO
O Centro de Estudos de Comunicação e Cultura é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia: UIDB/00126/2020.
REFERÊNCIAS
Bassnett, S. (2003). Estudos de Tradução. Fundamentos de uma disciplina. (V.C. Figueiredo, trad.). Fundação Calouste Gulbenkian.
Berman, A.(1985). La traduction comme épreuve de l’étranger. Texte 4, 67–81.
Bleton, C. (1997). Les nègres du traducteur. Liberté 6(234), 4-32.
Caroll, J. (2002). A Handbook for Deterring Plagiarism in Higher Education. Oxford Centre for Staff and Learning Development.
Casanova, P. (2002). A república mundial das letras (M. Appenzeller, trad.). Estação Liberdade.
CEATL [Conseil Européen des Associations de Traducteurs Littéraires] (2001). European Code of Ethics for Literary Translators. Consultado a 1 de agosto de 2021. Disponível em http://www.translitterature.fr/media/article_358.pdf
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NOTAS
[1] [in the heart of the text as it constitutes the locus of a second narrative and points to a new agency of authority within the written text: the translator.]
[2] [the liminal space (the text outside/inside the text which discusses the text) that simply cannot be disregarded.]
[3] [3. Le traducteur s’interdit d’apporter à la pensée ou à l’expression de l’auteur des modifications tendancieuses, d’amputer ou d’enrichir des textes sans l’accord exprès de l’auteur ou des ses ayants droit]
[4] [6. Le traducteur littéraire doit avoir une bonne connaissance du droit de l’auteur (...) et veiller à ce que le contrat de traduction les respecte.]
[5] [Passing off someone else’s work, whether intentionally or unintentionally, as your own for your own benefit.]
[6] [Copyright is infringed if the skill and labour which goes into creating a work (in this case the translated version) is relied on to a substantial degree by someone else.]