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Como Ler Literatura
Como Ler Literatura
Terry Eagleton

ISBN: 978-972-44-2485-9

Edição: junho de 2021

Editor: Edições 70

N.º de páginas: 272

Uma primeira impressão que nos fica após a leitura deste livro de Terry Eagleton, um dos precursores dos Cultural Studies, é que, apesar da inflação dessa área nova das ciências sociais e humanas, a qual secundarizou mesmo o texto literário em benefício de pós-modernas superstições, teóricos como Eagleton parecem reconhecer que os estudos literários devem concentrar-se naquilo que é a essência da arte literária, a sua linguagem.

Frank Farrell, num clássico da teoria literária anglo-americana, Why does literature matter (Cornell University Press, 2004), considerava que o espaço literário, em última instância, é um espaço ritualístico, na medida em que ler literatura é iniciar um rito e uma espécie de ritual; e isso porque ler literatura, ler o que é complexo, significa ultrapassagem e transgressão dos lugares-comuns e/ou dos preconceitos. Em rigor, ler literatura implica convocar uma imaginação concentrada, porquanto ler poesia ou romance, teatro ou outras textualidades é ir contra o ruído do mundo e obedecer ao silêncio, construir um lugar onde ler é já alguém debruçar-se sobre o objecto lido. Reflectir, porque o corpo flecte sobre o livro e o livro reflecte. Diz Farrell: to speak of the literary text as a ritual space is to give more internationalist account of a text’s power, through seeing the writer as offering a controlled sequence of verbal experiences [...] (Farrell, 2004:113). 

De facto, a literatura é produção de universos verbais, universos de linguagem e, especialmente no campo da educação – e da educação literária, sobretudo! -, importaria que as práticas pedagógicas e a didáctica da leitura tivessem como alfa e ómega essa esquecida lógica textocêntrica, essencial a toda a aprendizagem das línguas. Seja à luz da estrutura dos géneros literários, seja à luz de conteúdos mítico-simbólicos, ler literatura é sempre arriscar em novas formas de leitura desse espaço do interdito.

Terry Eagleton tem como público-alvo quer os alunos, quer os professores, e esclarece os termos em que este volume se estrutura e as razões que o levaram a ter de intervir. Por um lado, pretende-se que seja um «guia para principiantes», ao mesmo tempo que deverá ser um livro útil para quem está envolvido nos estudos literários «ou para quem simplesmente gosta de ler poemas, peças e romances nos seus tempos livres.» (p.11). Por outro lado, este é um guia com ideias sobre obras literárias e autores especificamente considerados (quase sempre de língua inglesa). Guia de ideias, este Como Ler Literatura justifica-se plenamente porque, segundo a visão de Eagleton, também comentador político, não se pode construir a pólis sem uma sólida consciência dos textos que a fecundam.

Se o ensaísta, diz, teve a preocupação de «apetrechar» o leitor comum de ferramentas básicas que o possam ajudar a entrar na literatura, certo é que, como se pode ler em quase todos os capítulos (Capítulo 1 - «Aberturas»; Capítulo 2 - «Personagem»; Capítulo 3 - «Narrativa»; Capítulo 4 - «Interpretação»; Capítulo 5 - «Valor»), esse apetrechamento vem escorado de uma visão política do literário, já que as gerações de leitores com menos de 35 anos estão hoje reféns duma ideologia do entretenimento mais “negando”, responsável  pelo lugar marginal que o livro e a literatura ocupam no campo simbólico da cultura.

Partindo duma diatribe (um diálogo imaginário entre estudantes de literatura acerca de O Monte dos Vendavais, no qual se discutiriam as personagens e o seu carácter, mas sem que os jovens leitores compreendessem como Emily Bronte teria construído retoricamente o enredo), Eagleton pode defender que a literatura, por definição, é o lugar da ambiguidade e da metáfora. São essas as características que dificultam, hoje, o acesso e a compreensão de muitos alunos, que se confrontam com obras nas quais a retoricidade é a marca de água deste ou daquele poema, deste ou daquele romance. Um dos grandes méritos deste ensaio é, pois, o de propor o regresso a uma leitura atenta às estruturas gramaticais da linguagem literária. Eagleton refere-se a uma leitura vigilante, em que cada leitor saberá ver que o texto literário, para ser fruído e compreendido, exige que quem lê esteja atento «ao tom, à atmosfera, à cadência, ao género, à sintaxe, à gramática, à consistência, ao ritmo, à estrutura narrativa, à pontuação», a tudo quanto chamamos forma. Por isso Eagleton observa, e bem, que não é o que diz o texto a chave com que podemos abrir ao entendimento dos leitores comuns, e mesmo especializados, obras como o Rei Lear, ou os contos de Oscar Wilde, a poesia de Milton ou a prosa de Proust.

Analisando excertos de diversos clássicos da literatura, Eagleton oferece-nos o laboratório da análise (só há interpretação depois de uma análise aturada das estruturas retóricas de um texto, lembra Óscar Lopes), isto é, o método através do qual um professor ou um aluno, um estudioso da literatura ou um simples curioso, podem ser também agentes da obra.

Analisando, por exemplo, o estilo de Henry James, que na fase tardia foi acusado de ser barroco e rebuscado, Eagleton transcreve um parágrafo que fez história (retirado de As Asas da Pomba), defendendo que o estilo de James nada tem que ver com o estilo do consagrado Dan Brown. Diz o teórico e ensaísta: «Tal como muita escrita modernista, a prosa de James recusa-se a não dar luta. Constitui um desafio para uma cultura de consumo imediato. Os leitores são forçados a um árduo trabalho de decifração.» (p.169).

Sabendo que a literatura é um fazer de linguagem, seria desejável que os leitores se sentissem «atraídos para as voltas e reviravoltas da sintaxe, numa luta para descortinar o que o autor quer dizer.».

Há um apelo constante, como vemos pelos trechos escolhidos, a que o leitor entenda por que razão a literatura é importante. E ela é importante porque pode seduzir e educar. Um exemplo dessa sedução educativa é o Ulisses de Joyce, obra que termina com uma frase sem pontuação, a qual se estende por cerca de 60 páginas. Sessenta páginas de demanda do sentido, esse o repto do mestre irlandês. Proust, outro exemplo maior do fazer linguagem, tem uma sintaxe labiríntica, permanentemente infiltrada de justaposições, prolepses e analepses. E o mesmo com Defoe, Dickens, Conan Doyle, escritores que cultivaram, em maior ou menor medida, o estilo duplo, a ambiguidade, que Eagleton opõe à pobreza dos bestsellers.

Noutro passo, o autor não se exime, pedagogicamente, a diferenciar a estética realista da modernista, por exemplo, observando que nas obras realistas há que preservar o princípio da realidade, evitando aquilo que nas obras modernistas virá a ser um valor ancilar: a possibilidade de o enunciado literário se fundar numa linguagem revoltada (que se rebela, voltando-se contra si e a si regressando).

Está em causa defender essa fascinante ilegibilidade do literário. Caso modelar da escrita realista em processo de transformação é o Tristram Shandy, cujo registo autobiográfico se desmonta à nossa frente, quebrando, a pouco e pouco, princípios de verosimilhança. Personagens deixadas para trás, pedaços inacabados de prosa, eis uma obra que obriga a que a personagem, ao escrever, tenha de o continuar a fazer para comprovar que o que escreve não é ficção. Escrever para contar o que se escreveu exige continuar a escrever à medida que se vai continuando a viver. Nisso assenta a lógica dessa obra-prima. Mas a literariedade de um romance, de uma peça de teatro, de um poema, prende-se com um aspecto especialmente relevante – e apontado no capítulo dedicado à interpretação –, a saber: a condição não-contextual, ou não-parafraseável, da obra literária. Simplificando: uma das condições de possibilidade da literatura é não estar qualquer texto literário dependente de um contexto.

Ao tecer a obra, o autor, se escreve imerso numa dada época, com seus valores, costumes, cultura e referentes, nem por isso tem de, obrigatoriamente, dar conta do contexto, ou estar preso a um contexto. Defendendo-se de indesculpáveis anacronismos (os The Smiths não poderiam jamais ser ouvidos por uma personagem que actuasse numa ficção cujo tempo fosse o século XVII), a relevância de um romance, de uma peça de teatro ou de um poema está na capacidade de fazer transitar quem lê do seu tempo para outros tempos, do seu espaço para outros espaços. Interpretar é, assim, depois de uma análise da retórica do texto, ser capaz de não inventar o que uma obra não diz, mas ser, simultaneamente, capaz de conceber uma dada obra como obra aberta, operativa, produtora de imaginação.

Em última análise, tendo em conta a intenção educativa deste ensaio que, em boa hora, as Edições 70 trazem a lume, direi que, como professor e leitor preocupado com o esmagamento da fantasia e da capacidade imaginante em contexto educativo, este livro de Terry Eagleton assume algumas teses bem antigas e que só uma pós-modernidade amnésica e virtual julga serem teses desfasadas do nosso tempo. 

Em Portugal, as teses diversas sobre a premente presença da literatura no ensino e sobre a emergência da literatura como disciplina axial para a formação integral dos cidadãos têm nos ensaios de Jacinto do Prado Coelho («A Educação do Sentimento Poético», 1944), David Mourão-Ferreira (vide Palavra Magia Corpo, 1991), Eduardo Prado Coelho («Ensinar Literatura», in A Letra Litoral), Maria Alzira Seixo (vide «Literatura e Ensino», in Presente e Futuro – A Urgência da Literatura, 2014), Manuel Gusmão (Uma Razão Dialógica – A literatura, a sua experiência do humano e a sua teoria, 2011), Paula Morão (ver texto introdutório ao volume  O Secreto e o Real – ensaios sobre literatura portuguesa, Campo das Letras, 2011) e Vítor Aguiar e Silva («A Lógica textocêntrica nas aulas de português», in As Humanidades, Os Estudos Culturais e o Ensino da Literatura, Almedina, 2010) exemplos maiores de compromisso político e visão estratégica da literatura. Fito que se pressente no ensaio de Eagleton.

Duas teses são, neste conspecto, absolutamente inescapáveis e fazem coincidir o pensamento do teórico anglo-americano com os ensaístas portugueses atrás indicados: 1.ª - a obra literária não é (ao contrário da moda hodierna do romance soi disant «histórico») relato histórico, é reinvenção da história, abertura do ângulo de visão, reescrita para fazer imaginar e pensar; 2.ª - no ensino das línguas, o valor delas reside nos grandes textos, na compreensão das potencialidades criadoras que a polissemia promove. 

 

António Carlos Cortez 

 

NOTA: O autor deste texto escreve de acordo com a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990. 

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