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O Infinito num Junco
O Infinito num Junco
Irene Vallejo

ISBN: 978-972-25-4037-7

Edição: outubro de 2020

Editor: Bertrand Editora

N.º de páginas: 456

 

Este é o livro que tem como propósito o conhecimento sobre o próprio objeto, sobre as palavras que nele são registadas para sempre, mas, sobretudo, sobre as pessoas que lhe deram vida, que o leram com paixão e o perpetuaram até aos nossos dias. Este é o livro que revela a Humanidade e nos faz acreditar que há vínculos que nos unem muito mais fortes do que as geografias que nos afastam.

Esta narrativa começa no tempo em que ainda era possível, pelo menos pelo sonho megalómano de um rei, reunir numa só biblioteca todos os livros do mundo. É em Alexandria que conhecemos a biblioteca cuja lenda chegou até nós pelos juncos de papiro que cresciam nas margens do Nilo. Num discurso emotivo que não esconde, porém, a história real e documentada, Irene Vallejo transporta-nos numa aventura que percorre todos os lugares por onde circulam ideias, primeiro memorizadas e espalhadas pelo ar, depois, porque a memória é curta, escritas em livros. Foi esta relação apaixonada com as palavras que mobilizou ao longo dos séculos a ação protetora de reis, imperadores, plebeus, contadores de histórias, estudantes, aventureiros, escribas, monges, freiras, professores, bibliotecários, escritores, tradutores, filósofos, escravos, mães, livreiros - personagens a quem se dá voz neste relato, fiéis depositárias das ideias e palavras do nosso passado, mais ou menos remoto.

Na primeira parte da obra, materializa-se a ideia da criação de uma biblioteca universal que reúne as obras mais importantes, num “esforço para unir os pedaços dispersos do Universo” (47).  Ao longo dos vinte e cinco capítulos, a invenção do alfabeto, que transformou “a memória, a linguagem, o ato criador, a maneira de organizar o pensamento, a nossa relação com a autoridade, com o saber e com o passado” (95), e a invenção do livro apresentam-se como uma vitória sobre o tempo de vida das ideias, pois “o ato de escrever prolongava a vida da memória, impedia que o passado se dissolvesse para sempre” (96), permitindo a preservação de identidades. A leitura era, na antiguidade, um “ritual que implica gestos, posições, objetos, espaços, materiais, movimentos, modulações de luz (…), circunstâncias que rodeiam o íntimo cerimonial de entrar num livro” (56) e de interpretar as palavras escritas umas atrás das outras sem separações ou sinais de pontuação. O aparecimento da escola e dos “primeiros lugares coletivos para a aprendizagem”, o modo como a Paideia se transformou “para alguns na única tarefa à qual vale a pena dedicar-se na vida” (145), as primeiras livrarias ambulantes que angariaram leitores por prazer, as bibliotecas que invadiram o mundo e em cujas prateleiras “aguardam juntos livros escritos em países inimigos, até em guerra uns com os outros” (156) e as “centenas de milhares de bibliotecários que trabalham em todo o mundo [e] alimentam o nosso vício das palavras”(153), otimizando sistemas de classificação “eficazes para se orientarem entre aquela informação que começava a transbordar por todos os diques da memória” (247), são dinâmicas que contrastam com o poder destruidor do fogo e das cheias, das traças e da humidade do clima ou a vontade de alguns tiranos que tornaram a sobrevivência do livro até aos nossos dias um autêntico milagre. Nenhuma herança é mais valiosa do que a do exemplo, e a nós, leitores, Vallejo desafia-nos a continuarmos a dar forma às nossas ideias fundamentais “em diálogo com os livros onde os clássicos falam” (398). Porque é assim que o que amamos se salvará.

Na segunda parte, ao longo de dezanove capítulos, viaja-se pela extraordinária rede de estradas que permitiu a movimentação de bens e pessoas como nunca antes fora experimentado, ainda que “sem o orvalho da poesia, dos relatos e dos símbolos” (260); estes, reproduziram-nos os romanos do modelo grego, um paradoxo que o poeta Horácio contou afirmando que “a Grécia, a conquistada, tinha invadido o seu feroz vencedor” (262). Foi também Horácio quem revelou “o fim do monopólio aristocrático sobre os livros”, que deu início a um novo ciclo no acesso à leitura - o leitor anónimo; novos leitores e novos formatos de livro conviviam com os anteriores enquanto eram copiados para o novo formato mais perdurável no tempo. Bibliotecas públicas e privadas, escritores, fãs, censura, cânone e comunidades de leitores foram conceitos contemporâneos de todo o império romano e ainda ajudam a “entender o passado como uma força que modela o presente” (377). Uma “urdidura de palavras, ideias, mitos e livros” unia todas as raças que constituíam o império romano, onde “mosaicos, banquetes, estátuas, rituais, frontões, baixos-relevos, lendas de triunfo e de dor, fábulas, comédias e tragédias modelavam – com ar, pedra e papiro – aquela identidade romana ampliada até limites inimagináveis [e constituía] o primeiro relato comum europeu” (392). Depois, sobrevieram tempos difíceis para os livros e para as pessoas, com o desmoronar do império como um castelo de cartas. Neste compromisso com a história que Vallejo nos apresenta, os seres humanos venceram a batalha da destruição e do caos graças à cooperação que se gerou em torno deste artefacto - o livro -, aprimorado incansavelmente. Em todas as suas formas, em todos os materiais tentados, em todas as suas experiências de uso, devemos aos nossos antepassados “a sobrevivência das melhores ideias fabricadas pela espécie humana” (399). Herdámos os melhores e os piores relatos de todas as épocas e são esses os que relemos neste livro e que lançam na memória imagens da nossa cultura permeada de luz e de sombra.

Este livro em papel desvenda-nos também um leitor global que lê por prazer e que procura o saber. Essa procura contínua de conhecimento capacita-o para o exercício de uma leitura mais perspicaz da literatura e do mundo, e é assim que vai construindo a sua identidade e a sua história, sem fronteiras geográficas. Afinal, sempre fomos leitores ávidos de aventura e de sonho: fomos ginetes enviados à procura de livros raros pelo rei do Egipto, assim como somos bibliotecárias a cavalo transportando mundos imaginários a adultos e crianças do Kentucky.

Como salienta Vallejo no epílogo, somos os únicos animais que fabulam, que afugentam os medos com histórias e que, pela partilha, constroem ligações e deixam de ser estranhos uns para os outros. Tal como é documentado, graças ao livro e ao vasto espaço de encontro e partilha de saberes que proporcionou, uma rede anónima de pessoas - ricas ou pobres, homens ou mulheres - salvou da destruição narrativas e pensamentos partilhados ao longo dos séculos. Este livro é, também por isso, um elogio à paixão pela leitura e à resiliência humana que dela resulta, o que lhe acrescenta um valor tão oportuno quanto provocador. Oportuno porque valoriza a humanidade que existe em cada um de nós, levianamente desconsiderada; provocador porque nos incita a caminhar para um futuro global que desvenda o seu rosto humano. É, pois, a esperança que também sobrevive neste relato. O grito das crianças do Kentucky “Traz-me um livro para ler” (404) parece anunciar mais ideias a unir-nos no futuro.

 

Isabel Ramos

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

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