ISBN: 978-989-54340-5-3
Edição: outubro de 2020
Editor: Kalandraka (Faktoria K de Livros)
N.º de páginas: 239
Michèle Petit é antropóloga e tem-se dedicado, há várias décadas, à investigação sobre a leitura e as suas práticas em diversos contextos, sendo amplamente reconhecida internacionalmente pelos seus estudos, sobretudo aqueles mais ligados aos “espaços de crise”, que incluem conflitos de diferentes tipos, mas também migrações e exílios, além de profundos problemas sociais. Ao longo dos anos, a sua intervenção pública em vários eventos confirmou que se trata de uma das vozes mais empenhadas na promoção da reflexão sobre o relevo da leitura (e de outras práticas culturais) na sociedade, destacando-se pela forma como consegue divulgar junto do público em geral, para além dos especialistas, um conjunto de ideias e exemplos de boas práticas de leitura, capazes de motivarem a ação de mediadores e de poderem ser amplamente replicados.
Autora de vários livros sobre o tema da leitura, da sua promoção e benefícios, como é o caso de, por exemplo, Éloge de la lecture (2002) e L'art de lire ou Comment résister à l'adversité (2008), Michèle Petit regressa mais uma vez ao tema em Ler o mundo, obra que, desta vez, foi finalmente traduzida e editada em Portugal graças à Editorial Kalandraka, na chancela Faktoria K de Livros. Trata-se de um volume particularmente relevante, não só pelo grande interesse e atualidade dos vários temas abordados, mas pela forma como a autora consegue articular a dimensão teórica, apoiada em leituras e referências relevantes, devidamente identificadas nas notas finais, com a prática, enumerando uma profusão de exemplos concretos distintos, realizados em diferentes contextos, um pouco por todo o mundo, num registo particularmente apelativo e sensível, quase literário também, capaz de prender os leitores à sua reflexão. Essa dimensão “ilustrativa”, que inclui, além de exemplos de boas práticas de leitura, excertos de obras literárias e de biografias de leitores, mas também experiências de vida da própria autora e de algumas pessoas próximas, é particularmente relevante, uma vez que imprime um cunho pessoal ao discurso, entrecortando-o com pequenas histórias, tornando-o mais significativo e permitindo a identificação dos leitores com o relato.
Nessa medida, o livro resulta num objeto destinado a um amplo público de leitores, incluindo especialistas e investigadores em questões de leitura e da sua promoção, mas também mediadores formais, como é o caso dos bibliotecários, professores e educadores, e informais, onde se incluem os pais e a família, não desapontando nenhum deles. Esta sugestão de que a leitura deste livro não se reduz, de forma estrita, ao domínio académico ou profissional é reforçada pela própria materialidade do volume, em termos de formato e dimensões, tornando-o também apetecível visualmente, até por causa da ilustração da capa. Aliás, a única nota dissonante do volume em questão é a incompreensível opção por não seguir o acordo ortográfico em vigor, sobretudo tendo em conta os destinatários preferenciais do livro.
Organizado em sete capítulos, a que se juntam um prólogo e um epílogo, o livro percorre alguns dos temas centrais relacionados com a leitura e os seus benefícios, quer em termos da construção pessoal do indivíduo, em múltiplos níveis, quer da sua relação com os outros e com o mundo, inscrevendo-o num espaço e permitindo-lhe a sua reorganização. Mas também aborda a relação da leitura com outras artes, a questão da sua transmissão, os seus agentes e os contextos onde ocorre, com relevo para a família, a escola e as bibliotecas, sem esquecer os múltiplos desafios que enfrentam. Os capítulos, apesar de organizados em torno de temas específicos, não são estanques e dialogam entre si, regressando aos mesmos exemplos ou reforçando algumas ideias anteriormente apresentadas, quase como uma conversa, num registo muito distante da secura e aridez de muitos textos académicos ou científicos. A opção por transformar as referências bibliográficas em notas finais colabora na leitura mais fluida do texto, deixando ao leitor especializado a tarefa de as consultar, se tiver esse interesse.
A autora retoma, neste volume, algumas das reflexões e intervenções públicas que tem vindo a fazer nos últimos anos sobre a leitura, em particular na América Latina, de onde recolhe muitos exemplos de diferentes países, discutindo algumas das declinações mais prementes e atuais do tema da leitura e da sua promoção, com relevo para os desafios colocados pelo digital e por uma sociedade e cultura dominadas pela rentabilidade imediata e utilidade visível dos seus produtos e manifestações. Não surpreende, nessa medida, que Michèle Petit apresente as suas reflexões como uma espécie de contracorrente em relação a esse discurso dominante, mas também em relação ao pessimismo e desânimo sobre a perda de relevo da leitura, da literatura e das artes em geral no contexto atual. Na realidade, a autora constrói um verdadeiro manifesto sobre a necessidade de continuar a valorizar a leitura (e a arte), não só enumerando aquilo que a investigação tem evidenciado sobre todas as suas vantagens e mais-valias, mas exibindo exemplos concretos que as ilustram, dando conta das transformações ocorridas nos indivíduos e na própria sociedade por ação dessa aproximação à leitura e à arte.
E o seu elogio, que constitui a chave de leitura do livro, não resulta apenas da enumeração de um conjunto de princípios teóricos sobre os quais tem assentado a investigação, mas da constatação, através dos vários exemplos evocados, de que é possível, nos dias de hoje, em todos os contextos, mas sobretudo nos mais frágeis e carentes, promover, com resultados positivos, práticas continuadas de aproximação à leitura, à literatura (oral e escrita) e às artes desde a infância. A variedade e diversidade dos exemplos que vão sendo convocados por Michèle Petit só surpreenderá os menos familiarizados com o seu trabalho de campo, que a levou a percorrer inúmeros países e a conhecer muitas realidades, algumas particularmente adversas. Ainda assim, esses exemplos de boas práticas, ocorridas em diferentes contextos geográficos, sociais e culturais, com indivíduos de várias idades, mais do que modelos ou “receitas” a aplicar, funcionam sobretudo como inspiração ou motivação, reforçando a crença do leitor do livro de Petit de que é, ainda hoje, possível fazer a diferença na vida das pessoas através da leitura, porque a literatura e a arte têm um papel relevante na construção de cada indivíduo e, em consequência, da própria sociedade.
Nesta medida, talvez se possa afirmar que os leitores de Ler o Mundo serão sobretudo aqueles que, de alguma forma, já se interessam pelo tema da leitura e, por isso, estarão à partida cientes das suas virtualidades, não necessitando de ser convencidos pela argumentação da autora. Contudo, pelas dificuldades que enfrentam, alguns a trabalhar em contextos claramente desfavorecidos e em condições desafiadoras, os mediadores de leitura poderão encontrar neste livro a inspiração necessária para fortalecer as suas convicções, devidamente ancoradas na investigação, e orientar as suas práticas, tendo em vista uma necessária e urgente cada vez maior aproximação à literatura e a todas as formas de arte.
Ana Margarida Ramos