RESUMO
O Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (Programme for the International Assessment of Adult Competencies, PIAAC) é um programa internacional multiciclo de avaliação das competências dos adultos promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). É o estudo internacional mais abrangente sobre as competências dos adultos e permite analisar em profundidade o modo como estes são capazes de mobilizar, na sua vida quotidiana, os conhecimentos e as capacidades que adquiriram ao longo da vida, em três domínios distintos: literacia, numeracia e resolução de problemas, nomeadamente em ambientes tecnologicamente desafiantes. Neste artigo, serão apresentados e discutidos alguns resultados obtidos no 1.º Ciclo do PIAAC sobre práticas de leitura em contexto laboral e social e, mais em geral, sobre posse e uso de competências de literacia pelos adultos participantes. Tendo em conta a participação prevista de Portugal no 2.º Ciclo deste Programa, o artigo explorará ainda o quadro concetual que guia a avaliação das competências de literacia neste novo andamento do estudo e procurará refletir sobre as oportunidades que a apropriação deste quadro concetual e dos resultados do PIAAC pode suscitar em matéria de fundamentação e organização das estratégias e das práticas de promoção da leitura e de desenvolvimento de competências de literacia concebidas e dinamizadas por profissionais do campo alargado da educação e formação de adultos.
ABSTRACT
The Programme for the International Assessment of Adult Competencies (PIAAC) is a multicycle programme of assessment and analysis of adult skills developed by the Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD). It is currently the most comprehensive study on adult skills, allowing for an in-depth analysis on adults’ proficiency in key information-processing skills – literacy, numeracy and problem solving –, and the gathering of information on how adults use their skills at home, at work, and in the wider community. This paper presents some results of PIAAC’s Cycle 1 on reading practices at home, at work, and in other social settings, and aims at discussing the relations between literacy proficiency and the use of literacy skills by adults. Considering the expected participation of Portugal in PIAAC’s Cycle 2, this paper will also explore the main aspects of the Programme’s literacy and reading components conceptual framework and reflect on the opportunities the appropriation and use of this conceptual framework, and of PIAAC’s results, by adult educators and trainers can bring to the building and structuring of new strategies and methodologies aiming at the promotion of reading practices and the development of literacy skills among adults.
PALAVRAS-CHAVE
leitura, literacia, competências dos adultos, PIAAC, Portugal
KEYWORDS
reading, literacy, adult competencies, PIAAC, Portugal
NOTA CURRICULAR DOS AUTORES
Luís Rothes é Professor Coordenador da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto (ESE-P.PORTO) e Investigador Integrado do inED – Centro de Investigação & Inovação em Educação da ESE-P.PORTO. Presentemente, desempenha funções como Coordenador Nacional do Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (PIAAC).
João Queirós é Professor Adjunto da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto (ESE-P.PORTO) e Investigador Integrado do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP). Presentemente, desempenha funções como Subcoordenador Nacional do Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (PIAAC).
O PROGRAMA INTERNACIONAL PARA A AVALIAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS DOS ADULTOS
O Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (Programme for the International Assessment of Adult Competencies, PIAAC) é um programa internacional multiciclo de avaliação das competências dos adultos promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e desenvolvido por um consórcio internacional e por entidades nacionais de pesquisa social. A sua concretização revela o empenho crescente, quer dos governos, quer de muitas outras forças e interesses sociais, na avaliação das competências dos adultos, para que seja possível monitorizar o modo como estes estão preparados para utilizar, na sua vida quotidiana e em contextos diversos, os conhecimentos e aptidões que adquiriram ao longo da vida. Esta avaliação é reconhecida como essencial para que se promova a qualificação dos recursos humanos, a equidade no acesso e participação nos mercados de trabalho e a participação educativa, cívica e cultural.
O Inquérito às Competências dos Adultos, que constitui a atividade central do PIAAC, é o inquérito internacional mais abrangente e detalhado sobre competências dos adultos. A sua concretização em Portugal exige a realização, no conjunto do território nacional, de até 1.800 entrevistas completas no domicílio a adultos entre os 16 e os 65 anos, na fase de pilotagem (Field Trial), e de 5.000 entrevistas completas no domicílio a adultos entre os 16 e os 65 anos, na fase principal do inquérito (Main Study). As entrevistas, com duração prevista entre 90 e 120 minutos, são realizadas preferencialmente com recurso a tablets (CAPI, Computer-Assisted Personal Interviewing).
Para garantir a harmonização dos processos de recolha de dados entre países com populações, estruturas sociais e económicas, culturas, idiomas, níveis educativos e experiências de vida muito diversas, Portugal, como todos os outros países participantes, segue as diretrizes de garantia de qualidade estabelecidas pelo consórcio da OCDE, que se orientam por padrões exigentes para o desenho da pesquisa, a implementação da avaliação e o tratamento e divulgação dos resultados.
O questionário organiza-se em dois módulos principais: o primeiro de caracterização do inquirido (Background Questionnaire), o segundo de avaliação direta de competências (Direct Assessment). No Background Questionnaire, interrogam-se dimensões relativas a: caracterização demográfica e socioeconómica dos respondentes; trajetória e participação educativa e formativa; condição perante o trabalho atual e história laboral; trabalho/profissão atual (ou último trabalho); uso de competências de literacia, numeracia e TIC no contexto laboral; uso de competências de literacia, numeracia e TIC na vida pessoal; ambiente e condições de trabalho; efeitos da posse e uso de competências na vida profissional e rendimentos; outros efeitos da posse e uso de competências fora do mercado de trabalho; competências sociais e emocionais. O Direct Assessment visa aferir, através de uma avaliação direta autoadministrada, as competências dos entrevistados associadas a tarefas quotidianas em três áreas distintas: literacia, numeracia e resolução de problemas, designadamente em ambientes tecnologicamente desafiantes (adaptive problem solving).
A OCDE lançou o 1.º Ciclo deste Programa em 2007, o qual contou com a participação de 38 países, ao longo de três rondas: 24 países na primeira ronda, em 2011-12, nove países na segunda ronda, em 2014-15, e seis países na terceira ronda, em 2017-18, incluindo neste caso nova participação dos EUA, que haviam participado já na primeira ronda. Portugal, enquanto Estado-membro daquela organização, também foi convidado a participar neste 1.º Ciclo do Programa. O essencial do trabalho de preparação desta exigente operação chegou a ser realizado (Ávila et al., 2011), mas o país abandonou o estudo por decisão do XIX governo constitucional.
Mais recentemente, através do despacho n.º 3651-A/2019, de 1 de abril, o XXI governo constitucional considerou essencial a participação portuguesa no 2.º Ciclo do PIAAC, tendo criado um Grupo de Projeto encarregado de coordenar o trabalho em Portugal. Os seus coordenadores foram designados pelo despacho n.º 4340/2019, de 26 de abril. O suporte administrativo e financeiro necessário ao desenvolvimento da atividade deste Grupo de Projeto é assegurado pela ANQEP – Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional, IP. É um processo de trabalho que se previa que estivesse concluído no final de 2023, mas cujo cronograma inicial foi ajustado, em virtude dos efeitos da pandemia da COVID-19. O adiamento da conclusão do trabalho do Grupo de Projeto para o final de 2024 foi já estabelecido no despacho n.º 2215/2021, de 1 de março, que estabeleceu igualmente a constituição de uma Comissão Nacional de Acompanhamento do PIAAC em Portugal.
Os resultados do Inquérito às Competências dos Adultos realizado no âmbito do 1.º Ciclo do PIAAC foram já disponibilizados aos países participantes e divulgados através de diversas publicações editadas pela OCDE (OECD, 2013a; 2013b; 2013c; 2016; 2019a; 2019b). Entretanto, foram também disponibilizados “ficheiros de utilização pública”, que têm proporcionado oportunidades investigativas e analíticas muito importantes; delas tem resultado uma produção cada vez mais significativa de textos da autoria de investigadores e equipas de investigação das mais diversas nacionalidades (cf. Maehler, Jakowatz, & Konradt, 2021). O mesmo acontecerá seguramente com os resultados obtidos no quadro do 2.º Ciclo do PIAAC, que se prevê que sejam disponibilizados entre 2023 e 2024 e que incluirão nessa altura, como se espera, dados relativos a Portugal.
1. A AVALIAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS DE LITERACIA NO PIAAC
Para o domínio da literacia, como para os outros domínios avaliados através da componente do Direct Assessment do Inquérito às Competências dos Adultos, foi construído um quadro que clarifica e fundamenta a definição de literacia, permitindo estabelecer o modo como esta deve ser avaliada: o leque de competências a serem avaliadas, os tipos de itens a serem usados, bem como as áreas de conteúdo, contextos e situações de vida dos adultos que requerem tais competências.
A proficiência dos adultos em cada um dos três domínios avaliados é assumida como um contínuo e medida em escalas; de acordo com os resultados que obtêm nos testes, os participantes no estudo são posicionados ao longo de escalas de 500 pontos, representando pontuações baixas níveis de proficiência baixos (capacidade para concretizar tarefas de complexidade limitada) e pontuações altas níveis de proficiência altos (capacidade para realizar tarefas diferenciadas e complexas). Para ajudar a interpretar as pontuações, a escala é dividida em níveis de proficiência. Existem seis níveis de literacia e de numeracia (de “Abaixo do Nível 1” – o mais baixo – até ao “Nível 5” – o mais alto) e quatro na resolução de problemas (de “Abaixo do Nível 1” – o mais baixo – até ao “Nível 3” – o mais alto).
A construção do processo de avaliação das competências de literacia partiu, por parte do PIAAC, da identificação das tarefas de leitura e de escrita com que as pessoas estão confrontadas no atual quadro informacional e comunicacional. A estrutura adotada, ainda que expandindo a definição de compreensão de leitura, baseou-se em definições anteriores de compreensão de textos, especialmente as do Inquérito Internacional à Literacia dos Adultos (International Adult Literacy Survey, IALS), concretizado entre 1994 e 1998, e do Inquérito sobre Literacia de Adultos e Competências para a Vida (Adult Literacy and Life Skills Survey, ALL), realizado entre 2003 e 2006.
No PIAAC, a literacia é entendida como a capacidade da pessoa adulta para aceder, compreender, avaliar e refletir sobre textos escritos, para poder, desta forma, cumprir os seus objetivos, desenvolver os seus conhecimentos e potencial e participar na sociedade (OECD, 2021).
Para se chegar a esta definição, consideraram-se quatro pontos de partida essenciais. Um primeiro afirma que a definição deve ser descritiva e não normativa. Com efeito, muitas definições de literacia estabelecem um estado ideal ou uma meta para a ação de promoção da literacia. Pelo contrário, o constructo subjacente ao PIAAC reconhece que os indivíduos variam na sua capacidade de obter sucesso na gama diversa de tarefas de literacia que enfrentam na sociedade contemporânea – a qual deve, por isso, ser avaliada. Há, em segundo lugar, a adoção de uma conceção ampla de literacia, alicerçada nos seguintes pressupostos: a avaliação destas competências básicas deve considerar todos os adultos, incluindo aqueles que estão nos níveis mais baixos de literacia; a gama de textos a serem considerados deve ser mais ampla do que a mobilizada nas avaliações anteriores, incluindo os textos frequentemente identificados como textos eletrónicos; e o tipo de comportamento de literacia medido deve ir além do simples uso de texto para um propósito imediato, de modo a permitir uma compreensão mais profunda da competência de literacia. Em terceiro lugar, a definição procurou permitir uma ligação com as avaliações IALS e ALL, favorecendo a análise das tendências verificadas ao longo do tempo. Finalmente, sublinha-se que a avaliação cognitiva, por si só, não é suficiente para compreender a situação em termos de literacia numa determinada sociedade, sendo importante apreciar também o envolvimento dos indivíduos em práticas de leitura e escrita (PIAAC Literacy Expert Group, 2009).
A avaliação das competências de literacia dos adultos no PIAAC envolve, portanto, diferentes tipos de texto. Eles distinguem-se, desde logo, pelo meio que utilizam (impresso ou digital). Com efeito, até há pouco tempo, a maioria das leituras realizadas pelos adultos tinham como suporte material impresso em papel. Atualmente, contudo, os adultos precisam cada vez mais de aceder e de usar o texto que é exibido numa tela de qualquer tipo, seja de um computador, de um tablet, de um smartphone ou de um qualquer outro suporte eletrónico.
Ao incluir estes textos digitais, a avaliação passa a considerar novos tipos de textos e conteúdos. Embora haja textos semelhantes àqueles em formato papel, eles são muito menos comuns nessa forma. Algumas dessas novas combinações de forma/conteúdo incluem textos interativos, como interações em secções de comentários de blogs ou em threads de resposta de e-mail, textos múltiplos, sejam exibidos ao mesmo tempo num ecrã ou ligados por meio de hipertexto, e, ainda, textos expansíveis, onde um resumo pode ser ligado a informações mais detalhadas se o utilizador o desejar.
Em termos de conteúdos, os textos utilizados na avaliação do PIAAC são caracterizados pelo seu tipo, pelo seu formato, pela sua organização e pela fonte mobilizada (OECD, 2021). Em relação ao tipo de texto, podemos encontrar descrições, narrativas, exposições, argumentações, instruções e transações. Já quanto à sua forma, os textos utilizados podem ser: contínuos (ou em prosa), compostos por frases organizadas em parágrafos; não contínuos (ou documentos), que são organizados em formato matricial ou em torno de recursos gráficos, podendo incluir listas simples e complexas, documentos gráficos (por exemplo, gráficos, diagramas), documentos de localização (por exemplo, mapas) e documentos para preenchimento (por exemplo, formulários); e mistos, envolvendo combinações de elementos contínuos e não contínuos (por exemplo, um artigo de jornal ou uma página da web que inclui texto e gráficos). Os textos caracterizam-se também pela sua organização, ou seja, pela quantidade de informação, a densidade do conteúdo e os dispositivos de acesso. Finalmente, caracterizam-se pela respetiva fonte, que pode ser um texto único ou textos múltiplos, com a justaposição ou ligação de elementos gerados de forma independente, como um e-mail, que contém um registo de diferentes mensagens trocadas durante um período de tempo, ou uma postagem de blog, que contém um texto inicial e uma sequência de textos relacionados consistindo em comentários em resposta ao texto inicial e comentários em resposta a outros comentários.
Por outro lado, o PIAAC considera na sua avaliação as seguintes três estratégias cognitivas normalmente utilizadas pelos leitores ao lidarem com textos escritos: i) aceder, que envolve identificar um texto relevante e localizar informações num determinado texto. Esta operação pode ser relativamente simples, quando a informação procurada é facilmente identificável, mas pode ser também uma operação complexa, quando requer raciocínio inferencial e uma compreensão de estratégias retóricas; ii) compreender, que envolve entender as relações entre as diferentes partes de um texto, para construir significado e retirar inferências do texto como um todo; e iii) avaliar, exigindo que o leitor relacione as informações do texto com outras informações, conhecimentos e experiências, por exemplo, para avaliar a relevância ou credibilidade de um texto.
O leitor precisa, com efeito, de avaliar todas as informações lidas em termos de precisão, confiabilidade e oportunidade. Esta avaliação é particularmente importante na leitura de material disponível online, já que, neste caso, as fontes das informações são mais variadas, havendo desde fontes confiáveis até publicações com autenticidade desconhecida ou incerta, sendo aí muito mais fácil distribuir os textos digitais de forma ampla e anónima. Além de fazerem julgamentos sobre a veracidade e a confiabilidade do conteúdo, os leitores precisam constantemente de avaliar se o texto é apropriado para a tarefa em que estão envolvidos, determinando se ele fornecerá as informações de que precisam.
Os textos selecionados para a avaliação da literacia no PIAAC consideram igualmente quatro diferentes contextos em que a leitura se concretiza (OECD, 2021). Estes contextos condicionam os tipos de texto encontrados, a natureza do seu conteúdo, a motivação dos adultos para os ler e a maneira como os textos são por eles interpretados.
Há, desde logo, textos relacionados com o trabalho, os quais incluem materiais que discutem aspetos como sejam a procura de emprego, os salários e outros benefícios e a experiência laboral. Os materiais que dizem respeito à área pessoal referem-se a um segundo contexto considerado no PIAAC e incluem textos relativos ao lar e à família (por exemplo, relações interpessoais, finanças pessoais, habitação, seguros); saúde e segurança (por exemplo, drogas e álcool, prevenção e tratamento de doenças, segurança e prevenção de acidentes, primeiros socorros e emergências, estilo de vida); economia do consumidor (bancos, poupança, publicidade, preços); e lazer e recreação (viagens, atividades recreativas). São mobilizados igualmente textos relacionados com a vida comunitária, incluindo-se, neste contexto, materiais que tratam de serviços públicos, governo, grupos e atividades na comunidade. Finalmente, há também materiais relacionados com a educação e formação, abrangendo textos que se referem a oportunidades de aprendizagem para os adultos.
O uso social destas competências de literacia é, pois, muito diverso. Muitos adultos parecem ler textos apenas quando alguma tarefa assim o exige, enquanto outros também leem pelo prazer que a leitura lhes traz ou motivados por interesses mais gerais, como seja a aprendizagem ao longo da vida, grande parte dela autodirigida e informal. Alguns adultos leem apenas o que outras pessoas ou entidades – empregadores, governos – tornam necessário, enquanto outros leem por sua própria iniciativa. Os adultos diferem, portanto, no grau de envolvimento com o texto e no papel que a leitura desempenha nas suas vidas. É, por isso, essencial avançar na compreensão dos respetivos níveis de literacia, tanto mais que os estudos disponíveis revelam que o modo como estes se envolvem com as práticas de leitura apresenta, como se sublinhará em seguida, correlação importante com os níveis de proficiência demonstrados.
2. COMPETÊNCIAS DE LITERACIA E PRÁTICAS DE LEITURA NO PIAAC – RESULTADOS DO 1.º CICLO DO PROGRAMA
2.1. Proficiência em literacia
No 1.º Ciclo do PIAAC, a proficiência média dos adultos respondentes correspondeu, no domínio da literacia, no conjunto dos países da OCDE, a 266 pontos. Este valor, medido numa escala de 500 pontos, ficou quatro pontos acima da proficiência média registada no domínio da numeracia (OECD, 2019a; cf. também Rothes & Queirós, 2020). Os scores médios de literacia nos países da OCDE variaram entre os 296 pontos observados no Japão e os 220 pontos registados no Chile. No conjunto dos 38 países participantes nas três rondas do 1.º Ciclo do PIAAC, os resultados médios mais baixos foram obtidos no Equador e no Peru (196 pontos), países que, porém, não fazem formalmente parte da OCDE. No sul da Europa, Grécia, com 254 pontos, Espanha, com 252 pontos, e Itália, com 250 pontos, apresentaram desempenhos em literacia abaixo da média dos países-membros daquela organização, correspondendo também aos países com mais baixos scores médios de literacia no conjunto dos países da União Europeia que integraram o estudo (OECD, 2019a, p. 23).
A maioria dos adultos participantes no 1.º Ciclo do PIAAC apresentou um desempenho em literacia situado num patamar abaixo ou, quando muito, num patamar próximo da média geral observada: 54,1% dos respondentes apresentaram resultados até ao “Nível 2” de proficiência (inferiores a 275 pontos). A variabilidade dos resultados revelou-se elevada quer entre países participantes, quer entre respondentes de um mesmo país: em média, nos países da OCDE, consideradas as três rondas do 1.º Ciclo deste estudo, o hiato entre os 25% menos proficientes e os 25% mais proficientes foi, no domínio da literacia, de 61 pontos (OECD, 2019a, pp. 45-47).
Diferentes características sociodemográficas dos adultos encontram tradução em diferentes níveis de proficiência: tipicamente, a proficiência, nos diferentes domínios avaliados no PIAAC, está intimamente associada ao nível de escolaridade, à idade e ao background socioeconómico dos respondentes e apenas ligeiramente associada ao respetivo género.
Tal como seria expectável, em todos os países participantes no estudo foi possível verificar uma relação forte entre o nível de escolaridade dos adultos e a sua proficiência em literacia: entre os inquiridos com idades compreendidas entre os 25 e os 65 anos (isto é, indivíduos que, regra geral, completaram já as suas trajetórias académicas iniciais), a proficiência em literacia revelou-se sempre mais elevada entre os detentores de instrução de nível superior e sempre mais baixa entre os que detinham nível de escolaridade inferior à instrução secundária. Descontados os efeitos de outros fatores, a proficiência em literacia dos detentores de estudos de nível superior atingiu, de acordo com os resultados agregados do conjunto dos países da OCDE, valores médios situados cerca de 50 pontos acima dos valores médios observados no grupo dos inquiridos com escolaridade inferior ao nível secundário. Com efeito, trajetórias académicas mais longas tendem a favorecer o desenvolvimento de níveis de proficiência mais robustos e a providenciar o acesso a quadros profissionais e de vida mais desafiantes do ponto de vista do uso e desenvolvimento de competências de literacia, mas a relação entre nível de instrução e proficiência é complexa, como comprovam os desempenhos muito díspares nos testes de literacia verificados entre adultos com o mesmo número de anos de escolaridade, quer no interior de um mesmo país, quer sobretudo entre países (OECD, 2019a, pp. 66-68).
No que concerne à idade, os resultados do 1.º Ciclo do PIAAC revelaram um impacto na proficiência em literacia favorável aos adultos mais jovens. Na maioria dos países, os scores médios mais elevados nos testes de literacia foram alcançados pelos respondentes com idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos; já os scores médios mais baixos foram obtidos pelos adultos entre os 55 e os 65 anos. Em alguns países, os níveis mais elevados de proficiência em literacia foram alcançados pelos inquiridos com menos de 25 anos – muitos dos quais frequentadores do sistema de ensino à data de realização do inquérito –, mas as diferenças face ao grupo etário seguinte revelaram-se, nesses casos, reduzidas.
O diferencial de proficiência em literacia de acordo com a idade dos inquiridos revela-se estatisticamente significativo mesmo quando são descontados os efeitos de propriedades como o nível de escolaridade (em média bastante mais elevado entre os adultos mais jovens): a amplitude do diferencial de desempenho entre adultos mais jovens e adultos mais velhos é, neste caso, reduzida para metade, mas persiste ainda assim uma diferença estatisticamente significativa de 15 pontos, em favor dos primeiros, nos scores médios de proficiência em literacia, quando se consideram os resultados agregados obtidos para o conjunto dos países da OCDE. Este dado sugere uma associação entre envelhecimento e erosão da proficiência, mas o facto de, em alguns países, a diferença de performance entre grupos etários não ser estatisticamente significativa, ou ser até favorável aos adultos mais velhos, revela que outros efeitos de coorte podem ser observados – como os que decorram, por exemplo, de alterações na qualidade dos sistemas de ensino ao longo do tempo (OECD, 2019a, pp. 74-75; cf. também Barrett & Riddell, 2016).
Os resultados do 1.º Ciclo do PIAAC evidenciaram ainda a importância do background socioeconómico na determinação dos desempenhos dos adultos. Usando o nível de escolaridade dos pais como proxy do background socioeconómico dos respondentes, o que os resultados do PIAAC revelaram foi que os adultos com pelo menos um progenitor com escolaridade de nível superior obtiveram, em média, mais 41 pontos na escala de proficiência em literacia do que os adultos com progenitores sem o ensino secundário completo, facto não alheio ao papel do background socioeconómico na conformação das características diretamente associáveis à proficiência, mormente por via da reprodução intergeracional da participação e do (in)sucesso escolares (OECD, 2019a, pp. 81-82).
Quanto ao género, os resultados do 1.º Ciclo do PIAAC não evidenciaram senão ligeiras diferenças entre as performances dos homens e as performances das mulheres. Na maioria dos países, descontados os efeitos de outras características dos inquiridos, as diferenças de proficiência em literacia entre homens e mulheres são mínimas e surgem desprovidas de significância estatística: se aparecem mais pronunciadas em certos grupos, como no caso dos respondentes mais velhos, esse facto deve-se ao nível de escolaridade médio mais elevado que detêm os homens desse segmento etário e às formas diferentes de inserção e participação no mercado de trabalho observáveis entre mulheres e homens, que tendem a providenciar mais frequentemente a estes últimos contextos favoráveis ao uso de competências de literacia e, portanto, à manutenção ou desenvolvimento dos respetivos níveis de proficiência (OECD, 2019a, pp. 76-79).
2.2. Proficiência em literacia e práticas de leitura dos adultos
Além da associação observável entre níveis de proficiência e determinadas características sociodemográficas, os resultados do 1.º Ciclo do PIAAC evidenciaram também a correlação positiva entre os scores de literacia observados e os níveis de engajamento em práticas de literacia reportados pelos respondentes. Na generalidade dos países participantes no estudo, a níveis de proficiência mais elevados está associada uma participação também ela mais consistente em práticas de leitura (e escrita) na vida quotidiana. No mesmo sentido, os indivíduos com mais baixos índices de proficiência em literacia apresentam níveis de uso de competências sistematicamente abaixo dos da população em geral, havendo muitos que nunca leem ou escrevem no dia a dia, seja no contexto laboral, seja fora dele (OECD, 2013b; 2016).
No grupo dos inquiridos com proficiência em literacia situada no “Nível 1” ou “Abaixo do Nível 1”, a percentagem dos que nunca liam no trabalho ascendia, de acordo com os resultados do 1.º Ciclo do PIAAC, a 15,5%, face a apenas 5,2% no conjunto dos respondentes. A ausência de práticas de leitura fora do trabalho era, por seu turno, apanágio de 4,8% dos inquiridos com proficiência em literacia situada no “Nível 1” ou “Abaixo do Nível 1”, valor que descia para 1,3% no conjunto dos respondentes. Adicionalmente, os indivíduos que declaravam ler mais no trabalho eram também aqueles que mais liam fora do contexto laboral (Grotlüschen et al., 2016, pp. 40-42).
Proficiência e uso estão, pois, amplamente associados e tendem a reforçar-se mutuamente. A intensidade desta associação varia de país para país – e é possível encontrar, num mesmo contexto nacional, quer indivíduos com elevada proficiência em literacia que apenas marginalmente se engajam em práticas de leitura e escrita, quer indivíduos com baixa proficiência que, contudo, fazem uso das suas competências com bastante regularidade –, mas o que é mais comum é que os adultos mais proficientes se engajem mais em práticas de literacia, dentro e fora do contexto laboral, facto que tende a contribuir para a manutenção, ou mesmo melhoria, da sua performance ao longo do tempo. Pode falar-se, neste sentido, da indispensabilidade do uso da competência para a respetiva preservação e melhoria (use it or lose it) ou, se se preferir, de um “círculo virtuoso” entre (maior) proficiência, (maior) engajamento em práticas de literacia e (maior) possibilidade de mobilizar adequadamente velhas e novas competências (OECD, 2016, pp. 102-103; cf. também Grotlüschen et al., 2016; Desjardins, 2019; Reder, Gauly, & Lechner, 2020).
A implicação em práticas de leitura, escrita e numeracia parece igualmente influir na obtenção de melhores resultados económicos e não económicos e, enfim, no reforço do bem-estar individual e coletivo. Em geral, considerando um qualquer nível de escolaridade e patamar de proficiência, quanto mais os indivíduos se envolvem nestas atividades cognitivas (no trabalho ou fora dele), mais elevadas tendem a ser as suas remunerações.
Esta associação, que não deve ser confundida com “causalidade” (os nexos causais são multifatoriais e, portanto, de muito difícil circunscrição e aferição), revela-se especialmente forte entre os adultos com menor proficiência em literacia e prolonga-se para lá do domínio do ganho económico. De acordo com os resultados do 1.º Ciclo do PIAAC, e controladas outras variáveis, como o nível de escolaridade, a idade ou a proficiência, o uso das competências, em especial a participação em práticas de leitura fora do trabalho, está também associado a diversos resultados sociais favoráveis, correspondendo práticas mais intensas de leitura a índices mais robustos de confiança, adesão a práticas de voluntariado, capacidade percebida de influência política e saúde reportada (Grotlüschen et al., 2016, pp. 49-53; cf. também Lane & Conlon, 2016; Costa et al., 2014).
CONCLUSÃO
Os resultados do PIAAC fornecem, sem dúvida, indicações relevantes para o aperfeiçoamento do desenho e modos de operacionalização das políticas e programas de educação básica e de promoção da literacia dirigidos às pessoas adultas. Além de oferecerem suporte empírico à delimitação rigorosa dos grupos sociais que, em cada contexto nacional, devem ser envolvidos prioritariamente nas ações a desenvolver neste domínio, os resultados do PIAAC evidenciam a implicação decisiva do uso das competências na respetiva manutenção e desenvolvimento, bem como na produção de efeitos económicos e sociais favoráveis ao reforço do bem-estar individual e coletivo. Este último ponto sublinha a indispensabilidade da adoção de estratégias de treino e promoção da literacia assentes na provisão de oportunidades de engajamento efetivo e reiterado em práticas de leitura, escrita e numeracia que reproduzam desafios quotidianos das pessoas envolvidas, nos – e fora dos – respetivos contextos laborais.
Especialmente importante será, de acordo com os resultados do PIAAC, o engajamento em práticas de leitura, que se verifica ser o preditor mais forte da preservação e crescimento da proficiência em literacia (quando em comparação com os efeitos do engajamento nas demais atividades cognitivas avaliadas no estudo). Em virtude do efeito mediador da mudança nos hábitos de leitura suscitada pela participação em programas de promoção da literacia, é de esperar ganhos de proficiência entre os participantes, mas estes não serão observáveis senão nos médio e longo prazos. Neste sentido – e este é um ensinamento adicional do PIAAC –, as próprias lógicas de avaliação deste tipo de programas não podem ser centradas exclusivamente no processo e nos resultados imediatos, devendo antes ser diferidas no tempo (Reder, Gauly, & Lechner, 2020, pp. 271-272).
O conceito de “literacia-em-uso” adotado pelo PIAAC, cuja validade empírica os resultados do estudo atestam, fundamenta a adoção de um planeamento e de uma organização curricular das iniciativas de promoção da literacia dirigidas a pessoas adultas baseada no primado da prática e na mobilização de materiais, ferramentas, atividades e tarefas extraídas da “vida real”. Trata-se de garantir que os contextos formativos refletem o modo como as competências dos adultos são quotidianamente usadas fora deles – o que impõe que os textos selecionados, lidos e trabalhados ofereçam oportunidades de aprendizagem com significado efetivo para as pessoas, visando tarefas concretas relativas a áreas de interesse ou contextos de vida autênticos, cobrindo as diferentes estratégias cognitivas mobilizáveis e assegurando a inclusão de diferentes conteúdos, meios e formatos (Trawick, 2019). Ao espelharem a vida quotidiana das pessoas adultas, as atividades de leitura dinamizadas nos contextos formativos terão maior hipótese de serem prosseguidas para lá dos respetivos espaços e tempos e assegurarão, enfim, maiores probabilidades de retenção, desenvolvimento e transferência a longo prazo das competências desse modo exercitadas.
REFERÊNCIAS
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Costa, P. et al. (2014). Education, adult skills and social outcomes: Empirical evidence from the Survey on Adult Skills (PIAAC 2013). Publications Office of the European Union.
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