RESUMO
O desenvolvimento do meio digital enquanto suporte de leitura permite, retroativamente, observar como certas características que são agora evidentes e indissociáveis do meio digital estavam já presentes, ainda que o seu reconhecimento estivesse ainda latente, no códice. Depois de a teoria crítica se debruçar sobre os novos meios e suportes de escrita e leitura, o carácter transitório e de ocorrência da experiência de leitura tornou-se mais evidente. Vários estudos literários exigiam já a presença e a ação do leitor, assim como de outros agentes, para que o texto existisse. Mas talvez não se tenha dado ainda a importância devida ao ato que o leitor efetua. Mais ainda: não foi dada a devida importância ao objeto, que funciona tanto como caixa fechada como como chave para a abrir, nesse ato de leitura; ele não só contém o texto, mas também aquilo que permite que o leitor o descodifique. Este artigo pretende, além de sublinhar a importância do ato de leitura como fator constitutivo do livro, dar a ver o papel da materialidade do livro nessa ação: se é necessariamente o leitor quem ativa um livro, produzindo leitura, o próprio livro traz consigo um conjunto de características formais, que respondem a vários protocolos de leitura, às quais chamo «instruções de leitura».
ABSTRACT
The development of the digital medium as a reading medium allows, retroactively, to observe how certain characteristics that are now evident and inseparable from the digital medium were already present, even though their recognition was still latent, in the codex. Once critical theory focused on the new means and media of writing and reading, the transitory and occurrence character of the reading experience became more evident. Several literary studies already required the presence and action of the reader, as well as other agents, for the text to exist. But perhaps the act performed by the reader has not yet been given importance. Moreover: the object was not given due importance, which functions both as a closed box and as a key to open it, in this act of reading; it not only contains the text but also what allows the reader to decode it. This article intends, in addition to underlining the importance of the act of reading as a constituent factor of the book, to show the role of the book's materiality in this action: while it is necessarily the reader who activates a book, producing reading, the book itself brings with it a set of formal characteristics, which conform to various reading protocols, which I call «instructions for reading».
PALAVRAS-CHAVE
leitura, livro, convenções gráficas, tipografia, materialidade do livro
KEYWORDS
reading, book, graphic conventions, typography, materiality of the book
NOTA CURRICULAR
Ana Sabino é doutorada em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde é investigadora. Definindo o seu percurso de forma pluridisciplinar, é também licenciada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e mestre em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente, dá aulas de Tipografia na Escola Superior de Artes Aplicadas, no Instituto Politécnico de Castelo Branco.
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento do meio digital enquanto suporte de leitura permite, retroativamente[1], observar como certas características que são agora evidentes e indissociáveis do meio digital estavam já presentes, ainda que em estado de latência, ou melhor dizendo, num estado em que o seu reconhecimento estava ainda latente, no livro impresso.
Especificamente, depois de a teoria crítica se debruçar sobre os novos meios e suportes de escrita e leitura, o carácter transitório e de ocorrência da experiência de leitura tornou-se mais evidente. Quando Katherine Hayles, em 2006, escreve «The Time of Digital Poetry: From Object to Event», sublinha essa característica da poesia digital, que, no entanto, podemos remeter igualmente para o livro em papel: também neste, a poesia que lá está inscrita é ativada pela leitura e tem um valor singular de cada vez que é lida. Depois de ler poemas que, objetivamente, se reescrevem em cada instância de leitura, podemos reivindicar essa característica no livro em formato códice, relembrando o quanto a leitura é uma experiência subjetiva.
Vários estudos literários exigiam já a presença e a ação do leitor, assim como de outros agentes, para que o texto existisse. Falo, não só, mas como pontos seminais dessa discussão, dos incontornáveis «A morte do autor», de Barthes (1987 [1967]), e O que é um autor?, de Foucault (2006 [1969]). Mas talvez não se tenha dado ainda a importância devida ao ato que o leitor efetua em cada leitura. Mais ainda: não foi dada a devida importância ao objeto, que funciona tanto como caixa fechada como como chave para a abrir, nesse ato de leitura; ele não só contém o texto, mas também aquilo que permite que o leitor o descodifique. Este artigo pretende, além de sublinhar a importância do ato de leitura como fator constitutivo do livro, dar a ver o papel da materialidade do livro nessa ação. Se é necessariamente o leitor quem ativa um livro, produzindo leitura, o próprio livro traz consigo um conjunto de características formais, que respondem a vários protocolos de leitura, aos quais chamo «instruções de leitura».[2]
Em seguida apresento alguns dos paradigmas conceptuais relacionados com esta forma de entender o livro e a leitura mais como evento do que como objeto. Tentarei referir também quais as implicações que essa mudança de paradigma tem para o objeto: longe de lhe retirar importância, mostra-nos, pelo contrário, que ele tem um papel fundamental nessa espécie de orquestração, no sentido de direção, do ato de leitura.
1. ENTRE O LIVRO IMPRESSO E O LIVRO VIRTUAL
No seu ensaio «Modelling Functionality: from Codex to e-Book» (2009a), Johanna Drucker observa os sinais gráficos de navegação de um texto e sua representação em ambos os formatos, impresso e digital, sempre evidenciando que esses sinais gráficos não são apenas visuais; têm um lado utilitário (ajudam-nos a navegar dentro de um texto) e um lado semântico (ajudam-nos a interpretar certos aspetos do texto).
We may find headers a delightful feature on a page, chapter breaks and subheads convenient for our reading in reference materials, but rarely do we step back and recognize them as coded instructions for use. […] The familiarity of conventions causes them to become invisible, and obscures their origin within activity. (Drucker, 2009a: 172, ênfase meu)
Esta conceptualização que aqui apresento deve muito ao trabalho de Drucker, que sublinha nesta proposição o quanto estas convenções são negligenciadas. O que me estimulou para a escrita de um longo argumento em forma de tese de doutoramento[3] foi o desvelar destas convenções subestimadas, em objetos que nos são tão familiares que deixámos de os ver completamente, em toda a sua profundidade. A nossa leitura habitual apenas usa estas convenções; a minha intenção é a de as identificar e enfrentar, no sentido de «olhar de frente». Esse estudo segue ainda, em parte, outra sequência de sugestões para reflexão que a autora deixa no mesmo ensaio:
(1) start by analyzing how a book works rather than describing what we think it is; (2) describe the program that arises from a book’s formal structures; (3) discard the idea of iconic metaphors of book structure in favor of understanding the way these forms serve as constrained parameters for performance. (Drucker, 2009a: 170, ênfase meu)
Essa procura de tudo o que, no formato códice, é programático, é fundamental para que se possa efetuar uma justa transição para o livro eletrónico. É, não só, mas também, essa necessidade de transição para novos formatos que nos força a dispensar ao livro as suas características incidentais e a concentrar-nos na sua capacidade nuclear: a de dar a ler. Ou seja, tentar alcançar «a ideia de livro enquanto espaço performativo para a produção de leitura» (Drucker, 2009a: 169, em tradução livre[4]).
Drucker prossegue a sua argumentação no sentido da leitura enquanto atuação num outro ensaio: «Entity to Event: From Literal, Mechanistic Materiality to Probabilistic Materiality», no qual define o que se pode entender por leitura probabilística: «A probabilistic reading suggests that any text or image (or other aesthetic object — church, theater production, musical piece) is performed when it is read, looked at, experienced.» (Drucker, 2009b: 13). Esta experiência individual de leitura, em que o leitor aciona o objeto e lhe dá sentido, por sua vez, contribui para a formação, no leitor, de comportamentos e hábitos de leitura, num funcionamento que se autoalimenta e, ao mesmo tempo, garante a sua perpetuação e a sua capacidade de adaptação a novos ambientes e a novas instruções de leitura que nos possam ser apresentadas. Estas experiências individuais são partilhadas pela comunidade leitora, que vai trocando entre si tanto novas condições de leitura quanto novas formas de as utilizar. O enfoque é dado à ação; o objeto serve para o despoletar. Mas isto não significa que o objeto encerra em si mesmo o sentido — significa, sim, que ele cria as condições para que a leitura aconteça e o leitor crie um sentido:
Thus we have to understand texts, images, etc. as events, not entities. In their literal and physical construction, they express conditions and a field of forces […]. The material existence serves as a provocation, set of clues and cues for a performance of the text. (Drucker, 2009b: 13–4, ênfase meu)
Sublinho, portanto, a partir de Drucker, a questão da atuação; da leitura como ação que é despoletada pela materialidade do texto. Na materialidade do texto — na sua instanciação particular, presente perante nós — poderemos encontrar este conjunto de pistas e indicações, presentes em cada um dos elementos visuais e materiais, gráficos e tipográficos, de um livro. Esses vários elementos não têm um sentido fixo, eles encontram o seu sentido e a sua função na interação com o leitor. É no momento do encontro entre o trabalho do designer ou tipógrafo que os instalou, seguindo convenções estabelecidas por séculos desse ofício, e o trabalho do leitor que os descodifica, munido da experiência de leitura informada por séculos dessa prática, que se verificam estas «instruções de leitura».
2. PARA ALÉM DO PARATEXTO
A obra Seuils (1987), de Gérard Genette, fornece-nos um elenco de elementos paratextuais que assistem na leitura de um texto, como títulos, prefácios, notas, índices ou textos de contracapa. Foi este autor, aliás, quem cunhou o termo paratexto; o prefixo para sendo usado no sentido de estar ao lado, ou em volta, envolvendo o texto. O termo é utilizado para nomear os textos que rodeiam um texto principal e o qualificam: o apresentam, o completam, ou o esclarecem. Neste seu livro, o autor faz uma listagem exaustiva de todos os paratextos que podemos encontrar num livro impresso. No entanto, essa listagem não observa o lado não linguístico desses elementos. Quando escreve, por exemplo, sobre títulos, esclarece quais as suas funções, os seus remetentes e os seus destinatários. A forma como estrutura a obra demonstra bem a sua intenção de descrever as partes que compõem um livro a partir da sua função ao nível editorial.
Muito haveria a dizer também sobre a forma como se compõe tipograficamente cada um destes elementos — e bastante foi já dito, sob outra perspetiva, por vários designers ou tipógrafos, dos quais destaco Robert Bringhurst e a sua obra The Elements of Typographic Style (2004). Mas mais ainda, há muito o que dizer sobre a influência desse tratamento tipográfico no sentido do texto, ou seja, como estas duas abordagens se interligam. A maneira como um texto se nos apresenta é, sem dúvida, um fator que influencia a nossa leitura. Genette explicita na sua introdução que, quando fala em apresentação, quer englobar os dois sentidos do termo: o sentido que usamos mais comummente, mas também um sentido forte, que quer dizer «tornar presente«. Essa clarificação deve também ser feita aqui: quando falo de apresentação do livro, ou da palavra escrita, refiro-me sobretudo à maneira como um texto se torna possível e presente perante os nossos sentidos e a nossa perceção.
3. O LIVRO ENQUANTO MÁQUINA
Aquilo que considero especialmente relevante, neste momento de redefinição de formatos e modos de leitura, é entender o mecanismo que faz com que o livro seja um instrumento útil de partilha de informação; desmontá-lo, observar cada uma das suas peças e entender o seu funcionamento, como se, de facto, como B. P. Nichol e Steve McCaffery sugerem, de uma máquina se tratasse. Quando estes autores escreveram o ensaio «The book as machine», enunciaram nesse título aquela que poderia ser outra forma de descrever a premissa inicial deste artigo:
By machine we mean the book’s capacity and method for storing information by arresting, in the relatively immutable form of the printed word, the flow of the speech conveying that information. The book’s mechanism is activated when the reader picks it up, opens the covers and starts reading it. (McCaffery & Nichol, 2000 [1992]: 18)
Neste seu texto, no entanto, os autores, com o propósito de evidenciar o carácter performativo do livro, mostram-nos uma extensa lista de livros extraordinários — no sentido de fora da ordem quotidiana e habitual. Do meu ponto de vista, no entanto, a procura desse funcionamento pode e deve voltar-se precisamente para o habitual e quotidiano, identificando o conceito de livro enquanto mecanismo mesmo, e sobretudo, em livros comuns. Este ponto é importante, pois ainda subsiste a ideia de que livros com uma forma diferente da habitual foram feitos para serem vistos além de lidos, enquanto livros comuns seriam transparentes, permitindo-nos aceder ao seu conteúdo sem se interporem de forma alguma.
4. O LIVRO TRANSPARENTE
Essa ideia de transparência é justificada historicamente, do ponto de vista da tipografia e do design. Esse, de facto, foi o princípio orientador de várias gerações de designers de livros, como se pode observar na seguinte citação, retirada da introdução a um estudo sobre a psicologia da composição tipográfica, em 1959:
Apart from limited editions printed for the pleasure of bibliophiles and collectors, the book is ‘a machine to think with’, as professor I. A. Richards defined it in his Principles of Literary Criticism (1924). The task of the artist, therefore, is to assist and not impede the passage of the author’s thought to the perceptions and apprehensions of the thinking reader. (Stanley Morison em Burt, 1959: xvii)
Beatrice Warde imortalizou esta ideia de transparência no conhecido ensaio «The Crystal Goblet, or Printing Should be Invisible» (Warde, 2015 [1930]: 47–54), um texto que ainda hoje é uma referência essencial na tipografia e no design editorial. Não pretendo aqui refutar esta visão da tipografia como um meio que é totalmente transparente — mas apenas clarificá-la. Concordo que o objetivo de transparência e conforto de leitura é absolutamente louvável e defensável na prática de um designer. No entanto, pretendo também demonstrar que em cada passo a apresentação gráfica do texto nos interpela, necessariamente, tenha ela intenção de nos bloquear ou facilitar o acesso ao texto. Não existe um tipo de letra neutro, um formato neutro, um papel neutro. Todos esses elementos têm algo para nos dizer.
Da mesma maneira, esses elementos não falam sozinhos: não dizem por si mesmos, isoladamente. Não têm um significado fixo, mas sim um potencial de significação que se constrói na relação entre os vários elementos que os rodeiam e na sua relação com o leitor. O tipo de letra oferece as suas características visuais, a sua história de vida, o propósito com que foi desenhado. O leitor entra com a sua própria história de leituras, com as convenções que aprendeu até esse momento, com as suas expectativas perante esse ato de leitura em particular. E este conjunto forma um campo de probabilidades de interpretação. É importante sublinhar que um tipo de letra, ou qualquer outra opção gráfica de paginação, não tem um significado fechado e perene — ele significa algo na relação com os outros elementos da página, com as convenções estabelecidas, com os hábitos de leitura, e faz tudo isto no momento da sua leitura, que é sempre um evento irrepetível nas suas condições particulares. Amanhã, assim como dentro de cinquenta anos, será diferente. E esta forma de pensar o livro, ou qualquer outro meio de leitura, enquanto objeto que suporta e produz eventos e ações, é essencial para nos adaptarmos aos desafios e usufruirmos das possibilidades que os meios digitais de escrita e leitura nos apresentam.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos Professores Doutores Manuel Portela e João Bicker, orientadores da tese de doutoramento aqui mencionada, na qual este artigo se baseia.
FINANCIAMENTO
A tese de doutoramento Instruções de leitura. Um estudo sobre convenções gráficas de apresentação da palavra escrita foi financiada por uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência PD/BD/105704), tendo como instituição de acolhimento o Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
REFERÊNCIAS
Barthes, Roland (1987) O Rumor da Língua. Edições 70.
Bringhurst, Robert (2004). The Elements of Typographic Style (3.ª ed). Hartley & Marks.
Burt, Cyril (1959). A Psychological Study of Typography. Cambridge University Press.
Drucker, Johanna (2009a) Modeling Functionality: From Codex to e-Book. SpecLab: Digital Aesthetics and Projects in Speculative Computing, 165–74. University of Chicago Press.
Drucker, Johanna (2009b). Entity to Event: From Literal, Mechanistic Materiality to Probabilistic Materiality. Parallax 15 (4): 7–17.
Foucault, Michel (2006). O Que é um Autor? (6.ª ed). Vega.
Genette, Gérard (1987). Seuils. Éditions du Seuil.
Hayles, N. Katherine (2006). The Time of Digital Poetry: From Object to Event. In New Media Poetics: Contexts, Technotexts, and Theories, 181–210. MIT Press.
McCaffery, Steve & Nichol, B.P. (2000). Book as Machine [1973]. In Jerome Rothenberg and Steven Clay, eds. A Book of the Book, 18–24. Granary Books.
Sabino, Ana (2020). Instruções de leitura. Um estudo sobre convenções gráficas de apresentação da palavra escrita [tese de doutoramento]. Universidade de Coimbra. http://hdl.handle.net/10316/92415.
Warde, Beatrice (2015) A Taça de cristal, ou porque a tipografia deve ser invisível. In Teoria do Design Gráfico, 47–54.
NOTAS
[1] Para um estudo dirigido a esta retroação, leia-se Processos de retroação digital na página impressa. Intensificação e transformação da experiência do livro, tese de doutoramento de Sandra Bettencourt, Universidade de Coimbra, 2018.
[2] Esse é também o título da tese de doutoramento Instruções de leitura. Um estudo sobre convenções gráficas de apresentação da palavra escrita, que entreguei e defendi na Universidade de Coimbra em 2020. Faço aqui a menção explícita a essa tese uma vez que este artigo se limita a apresentar algumas bases conceptuais que servem de premissas para aquilo que expando e exemplifico na referida tese, disponível em http://hdl.handle.net/10316/92415.
[3] Referida na nota anterior.
[4] No original: «the idea of the book as a performative space for the production of reading» (Drucker, 2009a: 169).