Ler é fazer trabalhar o nosso corpo seguindo
o chamamento dos signos do texto, de todas essas
linguagens que o atravessam e que formam
uma espécie de irisada profundidade em cada frase.
Roland Barthes
Para que serve a leitura? – perguntamos, temendo que, no sentido da sua utilidade imediata, tenhamos de dizer: para nada. Não serve para triunfar, para ter sucesso, emprego, para ser feliz, viver melhor ou responder às encruzilhadas das coisas e do mundo. E, no mesmo momento, sabemos que é um dos mais gloriosos e raros modos do ser humano, dos que dão sentido e valor à vida, que permitem a transcendência e o humanismo. Na verdade, a história do humanismo é a história da leitura e da escrita.
Por isso, desejamos transmitir aos outros este gosto, esta magia transversal, esta vertigem que liga leitura e leitores.
Por isso, não resistimos a convidar à leitura, a ensinar a ler e escrever, a refletir e a compartilhar leituras, a mostrar a supremacia de um ato livre - não escravo de um tempo voraz, nem de um qualquer cânone, nem de desmandos pseudomodernos -, puro prazer e deleite. Mesmo tratando-se duma vivência sofrida, porque transformadora e reveladora do leitor disponível e curioso, o leitor em construção com o próprio escritor, no ato único de ler.
Como seria o mundo sem leitura, leitores e escritores? Território do nada: sem palavras para amar, sem esse sublime objeto de intervenção e do faber do real que elas constituem e representam.
A leitura tem uma fantástica vantagem face às novas formas de entretenimento geradas com recurso às novas tecnologias. Trata-se da durabilidade que vem de séculos e séculos de intenso labor a fixar e a divulgar o verbo e o texto escrito. É parte da nossa estrutura educativa e civilizacional. Tem sido condição de ser e conhecer, e é ainda um direito inalienável, de que não é permitido privar os homens. Todos os homens. Um lugar de liberdade pessoal, social e de bem-estar, garante do livre-arbítrio e defesa face à prepotência, ao preconceito feito lei ou, ainda, à brutalidade e barbárie contra a história dos próprios direitos humanos.
Mas, paradoxalmente, podemos encontrar nas tecnologias do nosso tempo formas e engenhos que servem para fazer e cativar leitores, para incrementar o gosto pela leitura e pela escrita, que as juntam a outras áreas de criação e deslumbramento e que, assim, prolongam esta quase milenar experiência de viver com e nos livros, qualquer que seja o seu formato acidental ou circunstancial.
A multimodalidade discursiva está a mudar a forma de ser leitor, juntando sob o fio condutor da palavra distintas linguagens, tecnologias e tipos de leitura, que enriquecem o sistema semiótico e nos desafiam. Ser letrado hoje significa aglutinar o melhor da cultura oral, verbal e literária com o influxo gerado pelas novas práticas de leitura digital, social e multissensorial, a que não podemos nem queremos resistir.
O título dado à revista, Entreler, faz alusão a esta posição transversal e multidimensional da leitura e da escrita, entre a literacia clássica e as novas literacias, a cultura letrada e a cibercultura, as artes e as humanidades, as ciências e as tecnologias, o passado e o presente-futuro.
Fazendo jus a esta pluralidade de leituras, o n.º zero da Entreler apresenta um conjunto variado de artigos, cobrindo temas da leitura infantil e juvenil, da literacia mediática e digital, da investigação e da práxis da leitura partilhada.
Sofia Ferreira e Ana Cristina Silva dão a conhecer os resultados da investigação na demonstração do impacto positivo da literatura infantil na literacia e no desenvolvimento de competências socioemocionais, nomeadamente da empatia, destacando a importância da forma como a leitura é feita e do tipo de conversa que se estabelece em torno das histórias lidas.
Carlos do Rosário apresenta os resultados de pesquisas no campo das práticas leitoras de populações estudantis do Ensino Secundário do distrito de Portalegre, reveladores da necessidade de investigação e de ações de promoção da leitura junto destes grupos em territórios com práticas deste nível de risco leitor.
Sara Pereira e Margarida Toscano trazem para a discussão o papel das bibliotecas escolares enquanto instituições mediadoras da realidade social dos alunos e enquanto agentes potencialmente promotores de leituras críticas da realidade, habitada e marcada pelos media, tendo como suporte um inquérito online dirigido a professores bibliotecários em 2019.
Maria Barbas [et al.] descreve a experiência decorrente da criação de um modelo único em Portugal de formação no Ensino Superior, para capacitar estudantes com dificuldades intelectuais que queiram prosseguir os seus estudos, melhorar as suas competências sociais, profissionais e digitais e potenciar em si um conjunto de competências, atitudes e comportamentos essenciais para a sua inclusão social e laboral no mercado de trabalho.
Íris Pereira discute a realização da leitura partilhada de textos narrativos com crianças que ainda não são leitores autónomos, evidenciando o papel da conversa sobre o texto lido, que apresenta como uma área de investigação de interesse.
Catarina Reis [et al.] fala-nos do Programa Explorastórias, do Centro Ciência Viva de Coimbra, especialmente pensado para crianças dos 3 aos 9 anos acompanhadas pelas famílias ou pelos professores, e que parte da leitura de histórias para a exploração de temas de ciência.
Os textos do n.º zero da Entreler foram escritos a convite do PNL2027, pelo que agradecemos aos respetivos autores. A partir deste número, será aberta uma chamada de artigos.
A revista inclui ainda uma entrevista feita por Carlos Fiolhais a Alberto Manguel, agendada perante a iminência da sua vinda para Portugal e da anunciada instalação da sua biblioteca pessoal em Lisboa, notícias com que muito nos congratulamos.
Faz também parte da Entreler um conjunto de propostas de leituras que, no n.º zero, quisemos dedicar aos temas da leitura, da escrita, da literatura e dos escritores.
Terminamos com uma palavra a quem faz esta revista e a quem a vai ler, para que este seja o início de um redobrado interesse crítico sobre as questões que hoje gravitam à volta do livro, da leitura, da escrita e das literacias, capaz de satisfazer a nossa reflexão, conhecimento e, sobretudo, a vontade de ler mais. De nunca desistir de ler.