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Um cânone é uma lista e uma lista é uma escolha
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

Miguel Real (MR)— O cânone literário é consensualmente visto como um estabilizador do campo da literatura, um referenciador, não um conceito absoluto. E saíram recentemente dois livros sobre o cânone: um com o título O Cânone, da autoria de três professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, aqui presente; o outro, mais individual, mais pessoal, é do Professor Eugénio Lisboa, que dispensa apresentações e também está aqui connosco, tem como título Vamos Ler e apresenta uma lista final de 35 autores. 

São dois livros especiais. O primeiro é um cânone muito desenvolvido do ponto de vista explicativo de cada autor. É profundamente iconoclasta, porque não só desrespeita a tradição do cânone em Portugal, desde o do Mendes dos Remédios, o do Fidelino Figueiredo, Teófilo Braga, passando por vários até chegar ao atual cânone, do Carlos Reis, mas desrespeita ironicamente - tem um olhar irónico fundamental. Porque, ao mesmo tempo que desrespeita, instaura um novo cânone. É isto que é a iconoclastia, pelo menos, não encontrei outra palavra mais adequada.

Isto é verdade, Professor Miguel Tamen? Não só que contesta o cânone antigo, consensual, aquele que vem do Estado Novo, que depois a Maria Alzira Seixo, o Eduardo Prado Coelho e a Eduarda Dionísio de certo modo expuseram, a seguir ao 25 de Abril - publicando aquele livro famoso, com textos de autores portugueses para ler na escola primária e no liceu -, mas que há também uma intenção de instaurar, de facto, um novo cânone, que não só rivalize, mas sobretudo conteste os cânones antigos?

Miguel Tamen (MT)— Muito obrigado. Devo dizer, em primeiro lugar, que tenho muito gosto em estar aqui e falar destas coisas, que claramente nos interessam aos três. Mas a resposta à sua pergunta é “Não”. Não nos passou pela cabeça instaurar cânone nenhum. Nós temos um entendimento minimal, e até certo ponto empírico, da noção de cânone. E nisso somos muito parecidos com o Professor Eugénio Lisboa. Quer dizer: um cânone é uma lista e uma lista é uma escolha. Não existe alguém (nem nós nem ninguém) dotado do poder normativo suficiente para, pelo simples facto de publicar uma lista de nomes, ou de ensaios sobre autores, como é o caso de ambos, conseguir transformar completamente as perceções que as pessoas têm.

MR— O Professor explica, no último texto, exatamente sobre o cânone, que é uma lista prospetiva e é uma lista que também tem a ver com o passado. E o Professor António Feijó, no primeiro texto sobre o cânone, também desmistifica, dessacraliza o conceito de cânone. De qualquer maneira, é impossível quem nasce hoje e daqui a vinte anos entra na Universidade não se debater com este livro e não considerar este o cânone dos seus pais (dos seus pais intelectuais, digamos assim).

MT— Sabe, é uma lista que tem muitos nomes em comum com a esmagadora maioria das listas parecidas. No fundo, a sua perceção de iconoclastia tem só a ver com uma coisa, é com o século XX depois de Fernando Pessoa. De resto, não há nenhuma escolha muito especial.

MR— Desculpe eu insistir. Mas há opções. Por exemplo, os três organizadores do livro fazem o cânone de literatura homossexual, que nunca tinha sido feito. Fazem o cânone de literatura feminista - que, aliás, está extremamente bem feito, pela Professora Ana M. Koblucka. No seio do livro, aparece um verbete que é "Portugal", que é visto de uma maneira empírica, utilizando a sua palavra, e original. Desde o Castelo Branco Chaves que não se fazia isso. Quer dizer, como é que os de fora nos veem? Considera um pouco que há um complexo entre os que estão aqui e que são vistos pelos que estão de fora e que recebem o olhar do outro como se fosse uma verdade quase absoluta, digamos assim. 

Porquê Portugal?

MT— Porque todas as discussões sobre estas coisas aparecem muitas vezes ligadas a discussões sobre aquilo que constitui um país, ou sobre a identidade nacional. E, muitas vezes, é uma certa ideia de Portugal que permite derivar num certo tipo de listas. Pense no livro da 3.ª classe, para não irmos mais longe. Há uma relação entre os autores incluídos nessa seleta, a maior parte dos quais só recordamos hoje como nomes de ruas (se é que nos recordamos de todo), e uma ideia muito particular sobre o que é um país - para onde vai, de onde vem, quem são os protagonistas.

MR— Uma identidade cultural, não é? Vou dirigir-me agora ao Professor Eugénio Lisboa. Professor, eu tenho uma provocação para lhe fazer: porque é que pôs na sua lista o Domingos Monteiro?

Eugénio Lisboa (EL) - Porque é um fabuloso contista. As pessoas nunca se devem esquecer, quando estão a falar deste cânone, que é um cânone para aliciar leitores não treinados. E os leitores não treinados aliciam-se com uma boa isca. E uma boa história, bem contada. O Domingos Monteiro é fabuloso, porque tem coisas do sobrenatural, tem coisas do mais realista, tem coisas de um regionalismo moderado, tem 12 volumes, ainda por cima. É o equivalente, em Portugal, por exemplo, a um Somerset Maugham no mundo anglo-saxónico - que é um esplêndido iniciador para pessoas que não estão habituadas a ler. Foi a escolha que fiz. É preciso ver o seguinte, que é exatamente o que se passa com os autores d’ O Cânone. Chamou-lhe um cânone iconoclasta. Curiosamente, posso dizer-lhe que, tirando talvez dois nomes - e não era para tirar esses, era porque talvez me parecessem melhor outros -, eu adiro completamente a esta escolha. Parece-me que até é uma escolha bastante consensual. Não tenho objeção absolutamente nenhuma. Uma das que tenho pode parecer um bocadinho atrevida: o rei Dom Duarte. Eu pergunto: quem é que hoje lê o rei Dom Duarte? 

MR— Saiu uma nova edição.

EL— Eu sei, mas isso não quer dizer que seja lido... 

MR— Pelo menos, o editor espera vender...

MT— Se me posso meter na conversa, aí há uma diferença de intenção entre o seu livro e o nosso que pode explicar isso. Como estava a dizer, a propósito do Domingos Monteiro, um dos propósitos que teve parece-me que foi levar pessoas que nunca tinham lido um livro a ler. Essa não foi a nossa preocupação.

EL— O que eu às vezes me pergunto em relação a certos nomes estabelecidos é se, com outra situação social (por exemplo, caso Dom Duarte não tivesse sido rei), os textos deles teriam sobrevivido até hoje. É a pergunta que faço. Eu tenho as minhas dúvidas. E não devemos ter medo de questionar. Conta-se que o Lope de Vega, no leito de morte, mandou chamar não um padre, mas um médico. Porque dizia ele: “Tenho uma confissão terrível a fazer; depois de fazer essa confissão, não tenho cara para olhar para ninguém. De maneira que preciso de saber se tenho muito tempo de vida ou se tenho pouco; se tiver pouco, faço a confissão.” Chamou o médico, o médico examinou-o com muito cuidado e, no fim, disse-lhe: “Se o senhor quer realmente fazer uma confissão, é melhor fazê-la depressa, porque a sua vida está por um fio.” E o Lope de Vega declarou: “O que eu tenho a confessar é horrível! É que eu acho o Dante tão chato!”.

(Risos)

MR— É o que o Professor diz do Joyce.

EL— Do Joyce, que eu acho uma chatice completa!

MR— É totalmente chato! As 30 primeiras páginas...

EL— Mas o número de autores, de nome, que depois do meu ato de coragem me ajudaram! O Borges, a Virginia Woolf achavam o Joyce absolutamente intragável!

MR— Estavam no mesmo tempo. Não estou a desculpar o Joyce, é realmente chato e é preciso uma certa atitude de espírito para o ler, mas é preciso saber história também. E a história é extremamente importante para a literatura, no sentido em que há um estofo. E, nesse sentido, era preciso perceber como é que a literatura estava nessa altura, no princípio do século XX, o que é que ele fez...

EL— Para isso, dava uma resposta: quando se diz "Para gostar deste livro, é preciso saber-se história", por exemplo, eu digo "Então é porque o autor não foi competente", porque deve dar ao leitor a informação suficiente e o mais discretamente possível para ele já não precisar disso. Se não o fizer, é porque não está a ser competente.

MR— Penso que ele dá, é o estilo dele...

EL— Uma ocasião, em Londres, quando eu estava lá como conselheiro cultural, encenámos o Frei Luís de Sousa, do Almeida Garrett, que é uma obra de que eu gosto muito. E os ingleses resolveram pôr uma pessoa a ir ao palco contar uma parte da História de Portugal para se perceber a peça. Eu disse: “Não estou de acordo! O Garrett, na peça, dá informação suficiente para não se precisar de mais nada”. Porque, se não o tivesse feito, não tinha sido competente como dramaturgo. Portanto, às vezes, nós somos um bocadinho paternalistas: “O autor, coitado, não soube... Deixa-me cá ajudá-lo.” Um grande autor não precisa disso!

MR— Posso fazer outra provocação?

EL— Pode, pode.

MR— Porquê Fialho e Teixeira Gomes e não Raul Brandão?

EL— A minha resposta é muito simples: esta não pretende ser a escolha, é uma escolha. Porque eu podia perfeitamente ter escolhido o Raul Brandão, que admiro imensamente. Aliás, eu fiz para mim próprio uma lista para uma outra “escolha de livros para o leitor relutante” e encontrei uns 30 ou 40 nomes que podiam perfeitamente servir. 

MR— Tive a sensação de que seria essa a resposta.

EL— E para O Cânone a mesma coisa. Vocês certamente deixaram de fora gente que podia perfeitamente entrar.

MT— Nós oscilámos entre uma versão mais maximal e uma versão ainda mais minimal. E foi um motivo de grandes discussões entre nós ao longo do tempo. Acabámos por conseguir uma versão intermédia, relativamente comprimida, porque quanto mais expandíssemos, mais se iriam parecer as entradas com entradas de dicionário ou verbetes de enciclopédia, que não era aquilo que nós queríamos fazer.

EL— Respondendo ainda à pergunta: o Raul Brandão é um enormíssimo escritor mas, para o meu fim, ele é um escritor a que eu chamo "um bocadinho desarrumado", como o é, por exemplo, o Dostoyévski. Para este leitor, não sei se seria a melhor isca de início.

MR— Professor Miguel Tamen, porque é que o Cânone ficou "amputado" da idade Média? Não é assim? Fernão Lopes, Dom Duarte...

MT— Lírica Medieval, há um ensaio sobre Lírica Medieval.

MR— Eu fiquei nos Cancioneiros...

MT— Há um ensaio sobre Lírica Medieval, do João Dionísio. E, no fundo, nós, a propósito de certos tópicos, fizemos um bocadinho de batota, que foi encomendar ou fazer ensaios sobre períodos, sobre Lírica Medieval, sobre Renascimento, sobre Barroco, essencialmente. Sobretudo sobre períodos mais remotos. Mas, no fundo, por exemplo, pensando no cânone de poesia lírica medieval, o número de autores é muito grande; se calhar nenhum autor considerado individualmente poderia ser tratado como autor no sentido moderno do termo. E aqui há um contraste enorme, por exemplo, entre o que se passa na poesia francesa, ou na poesia italiana, ou mesmo na poesia inglesa da mesma altura, e o que se passa na poesia portuguesa. Eu não sei se Dom Dinis era um grande escritor. Queria saber mais, não tenho evidência suficiente.

MR— O "verde pinho" entrou na memória popular.

MT— E há cantigas maravilhosas do Airas Nunes, mas são poucas.

MR— Por outro lado, fizeram o Barroco, o Renascimento, mas não fizeram o Romantismo...

MT— Porque aí há um fenómeno interessante de perspetiva histórica e de paralaxe, se é que posso usar a metáfora: é que quanto mais próximo de uma certa perceção contemporânea, por um lado, mais difícil é fazer escolhas, e por outro lado, mais tentados somos nós a individualizar nomes. Porque os nomes estão mais próximos de nós. Para além de que, se calhar, Romantismo é um exagero quando se descreve literatura portuguesa dessa altura. 

MR— Sim, não há nenhuma grande poetisa romântica. Aliás é dito aqui...

MT— E, se calhar, não há nenhum grande poeta romântico.

MR— É dito aqui, já não me lembro por quem, exatamente isso: a grande poetisa romântica, que não houve, talvez tenha sido a Florbela Espanca.

MT— Claro. Uma espécie de romântica atrasada, 100 anos depois...

MR— No sentido da iconoclastia… A Florbela Espanca também faz parte. Ela estava fora do cânone, era lida popularmente, aqui e no Brasil, mas estava fora do cânone até à década de 90, quando o Joaquim Manuel Magalhães fez aquele pequeno ensaio que agora aparece em todas as obras dela. E agora está n’O Cânone. Eu fiquei imensamente contente por ver a Florbela Espanca ali, ao lado de outros grandes poetas. 

MT— O caso da Florbela Espanca é um caso muito interessante, porque é um caso de divergência de perceção entre as pessoas que escrevem sobre literatura e as pessoas que compram livros de versos. Tal como há poetas que se diz que são poetas dos poetas, a Florbela Espanca não é uma poeta dos poetas. 

EL— Mas a Florbela, por outro lado, compreende-se que anteriormente não fizesse parte do cânone, talvez por preconceito social. A sua vida pessoal, a conceção do amor, um amor muito narcisista (ela gosta muito de si própria) que, para aquela época, era capaz de ser um bocado atrevidote…

MR— Não era capaz, era mesmo. De tal maneira que a Virgínia Vitorino na mesma época publicou Os Namorados e teve 12 edições em 10 anos, enquanto ela teve só uma edição.

MT— Mas, em relação à Florbela Espanca, há uma coisa interessante - uma espécie de teste semiempírico que se pode fazer ou imaginar fazer - e que tem a ver com a dicção particular da Florbela Espanca. À vista desarmada, a Florbela Espanca é muito parecida com a Virgínia Vitorino e com as senhoras que escreviam na altura, a maior parte delas esquecidas.

MR— Agora o contrário da Florbela Espanca. Professor Eugénio Lisboa, porque é que tirou toda a poesia de 61 do seu cânone? Nem Maria Teresa Horta, nem Fiama Hasse Pais Brandão...

EL— Precisamente pela razão da acessibilidade. A poesia de 61 não é, na minha opinião, a mais indicada para um leitor que não lê. A poesia, de uma maneira geral, já não é aquilo por onde as pessoas gostam de começar. E a poesia de 61, com aquela falta de nexos lógicos, etc... Eu também não recomendaria aos ingleses, para começarem, um T.S. Elliot, independentemente da grandeza dele como poeta, não é? Portanto, a razão foi apenas essa. Não houve preconceito pessoal contra isso.

MR— Eu fiquei admiradíssimo quando não vi ninguém, absolutamente... A Maria Teresa Horta...

EL— Eu gosto imenso da Maria Teresa Horta.

MR— Ela tem imensos versos populares. E romances, também. Mas também não pôs o Ruy Belo. É um dos melhores poetas do século XX.

EL— O Ruy Belo podia perfeitamente pôr, sim. Não é completamente easy going, mas tem condições de acessibilidade e de sedução suficientes. Uma ocasião, um aluno em Lourenço Marques, na aula de Ciências Geográficas, queria embatucar um professor (um professor com uma certa pompa) e perguntou-lhe: “Professor, porque é que, na posição relativa dos astros do sistema solar, nunca há uma posição em que o Sol fique entre a Terra e a Lua?”. E ele respondeu: “Olhe, menino, além do mais, porque não cabe.” (Risos) Eu diria que o Ruy Belo não coube aqui.

MR— Eu já não ia fazer a pergunta seguinte, que era sobre o Herberto Hélder.

EL— Mas o Herberto Hélder é óbvio que não era a isca ideal. Aquelas metáforas dele, a aproximação do inaproximável, que é uma das características daquele parassurrealismo… É evidente que não ia converter ninguém com o Herberto Hélder. Admiro-o imenso, acho que é um dos nossos grandes poetas, mas não para este fim.

MR— Fiquei muito feliz por ter posto o Sílvio Lima.

EL— O Sílvio Lima, eu admiro-o imenso. O Ensaio sobre a Essência do Ensaio é um grande livro.

MR— E incluiu o António Sérgio, o Oliveira Martins e o Antero, As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Isso é do cânone.

EL— Não é que eu ache que o Antero, nesse texto, tenha esgotado as causas da decadência dos povos peninsulares. Mas é um grande texto de meditação. E, para mim, é um modelo de prosa de ideias. Porque todos os grandes filósofos, sejam eles alemães, ingleses, espanhóis, têm uma característica: a grande clareza de ideias e a transparência da escrita. Aliás, eu costumo citar muitas vezes o Wittgenstein, que dizia que, quando uma ideia não se consegue exprimir com grande simplicidade e transparência, é porque talvez ainda não esteja madura para ser expressa. E o Antero, nisso, é um grande exemplo na nossa literatura.

MR— Ele não era propriamente inovador, nas Causas… O Alexandre Herculano tinha-o dito já, também, o Agostinho Macedo, mas numa outra visão.

EL— O Oliveira Martins, o Portugal Contemporâneo e a História de Portugal, eu acho que são livros fundamentais para nós percebermos quem somos.

MR— Sem dúvida. Para voltarmos ao livro O Cânone, a que eu chamei "iconoclasta", registei que um livro é iconoclasta quando altera a nossa visão do passado e não respeita a tradição memorialística da sociedade. Por falar em memória, um dos verbetes de que mais gostei foi aquele que é sobre memória, sobre memórias, do Rui Ramos.

MT— É um ensaio sobre uma tradição de memorialismo, não apenas literário, também histórico, autobiográfico, de modo geral.

MR— Eu acho que ele esgota o tema. Com o número de páginas que tem, esgota o tema. Devia dar um ensaio de cento e tal páginas, digamos assim... O Professor acha, então, que este vosso livro não altera a visão da literatura?

MT— Não nos compete a nós dizer se altera ou se não altera.

MR— Eu acho que altera bastante.

MT— Houve uma coisa que nós quisemos fazer, mas não tem necessariamente a ver com alterar visão nenhuma. Quisemos que todos os ensaios fossem ensaios com um argumento, com uma tese. É, no fundo, como se tivéssemos encomendado a pessoas - e, desde logo, a nós próprios - redações com o tema "Quais são as razões que eu tenho para estimar particularmente este autor?". E, portanto, desse ponto de vista, quando passamos ao domínio do argumento, quando já não estamos a falar do que nos passa pela alma ou do que sentimos entre a segunda e a terceira costela, quando somos obrigados a dar razões para as nossas preferências, estamos pelo menos a dizer que não pensamos estas coisas por acaso. Agora, não sabemos o que vai acontecer às cabeças das pessoas. É provável que não aconteça muito.

MR— Seria verdade se eu dissesse que este Cânone pressupõe uma identidade, mas não a explicita? Uma identidade de Portugal.

MT— Não, não, não. Nós não temos nenhuma teoria da identidade na manga. 

MR— Os textos - neste caso, até do Professor (o texto sobre Portugal) - são bastante empíricos, baseados na identidade...

MT— Como reação à ideia de que precisamos de uma teoria geral de Portugal para falar de literatura portuguesa. Felizmente não precisamos. Uma teoria geral sobre um país é como aquelas ajudas nas provas de ciclismo, quando membros do público empurram os ciclistas para a frente. Não vale a pena.

MR— Mas tem sido sempre assim.

MT— Eu sei. Mas é uma tradição infeliz.

MR— Pelo menos, desde o Teófilo Braga.

MT— Eu sei. 

MR— Com o Mendes dos Remédios era o nacionalismo - era a época do Salazar. Depois vieram o Óscar Lopes e o António José Saraiva...

MT— E o Eduardo Lourenço.

MR— É uma pergunta que eu tenho para fazer. Na Crítica, não incluiu Eduardo Lourenço.

MT— Posso-lhe dizer uma coisa francamente?

MR— Diga, diga.

MT— Não é um grande crítico. Tem um grande livro: Pessoa Revisitado.

MR— Sabe que foi o único livro que ele fez por inteiro?

MT— Sei. E nota-se.

EL— Também concordo consigo. Eu não vejo o Eduardo Lourenço como um grande ensaísta, de maneira nenhuma.

MR— Eu sei. Eu li o artigo que escreveu no Jornal de Letras quando ele morreu.

EL— Aquilo foi um bocadinho para criar uma divergência. Quando um autor morre, não se lhe faz uma homenagem, faz-se-lhe um balanço. É o que eu vejo fazer nos obituários, por exemplo, do New York Times. Faz-se um balanço: diz-se o bom e o menos bom. E aquilo diminui culturalmente o nosso meio intelectual.

MR— Mas o Professor Miguel Tamen reduziu a Crítica Literária praticamente ao Gaspar Simões e ao Eduardo Prado Coelho.

MT— Mas aí o propósito foi um bocadinho diferente, foi tentar fazer um pouco como o Plutarco fez em Vidas Paralelas (não sei aqui quem é o grego e quem é o romano).  Eram dois críticos do século XX que foram muito influentes no seu tempo, de maneiras completamente diferentes, que não gostavam um do outro e que duraram muito tempo. Isto são simplesmente constatações de factos. 

MR— Mas acaba de uma maneira muito bela. Não porque eles quisessem, mas porque as condições se alteraram.

MT— Não quero fazer sociologia da política ou história da política, mas Prado Coelho foi um crítico cuja vantagem comparativa - se é que posso usar o termo - tinha a ver com o facto de ele ter tido acesso a livros a que quase mais ninguém tinha acesso.  De repente, quando se liberalizou o comércio externo e muitas pessoas passaram a ter acesso a esses livros, lá se foi a vantagem comparativa.

MR— Senhor Professor Eugénio Lisboa, sabe que fiquei admirado por ter incluído os Esteiros?

EL— Ah, mas eu li os Esteiros quando era adolescente, quando era aluno do liceu, e li-o com deslumbramento. Eu nunca fiz crítica ideológica. Não me interessa nada saber se o indivíduo é da esquerda, da direita ou do centro. E o livro Esteiros do Soeiro Pereira Gomes é um livro admirável sobre a adolescência. Impressionou-me imenso.

MR— Há um outro também muito bom, que é do José Marmelo e Silva, mas é pouco conhecido.

EL— O Marmelo e Silva, eu gosto imenso dele.

MR— O que ambos não puseram na lista foi o Alves Redol, nem o Manuel da Fonseca.

EL— Ah, o Manuel da Fonseca! Volto à minha, não coube! Faria perfeitamente parte, não há incompatibilidade nenhuma entre a minha lista e o Manuel da Fonseca. Não coube.

MR— E o Alves Redol.

EL— Eu acho a Aldeia Nova um livro admirável. E a poesia dele.

MR— A poesia um pouco singela da Rosa dos Ventos, que é o primeiro livro dele. E os contos…

EL— E a poesia do Manuel da Fonseca, curiosamente, tem a admiração dos indivíduos mais inesperados. Por exemplo, quem pense na poesia do Alberto Lacerda não pensa na poesia do Manuel da Fonseca. No entanto, o Alberto Lacerda admirava profundamente a poesia dele.

MR— Qual é a explicação para não aparecerem n’ O Cânone os grandes do neorrealismo, Professor Miguel Tamen? São ultrapassados? Têm um contexto social diferente?

MT— As nossas conversas não foram conversas sobre quem está e quem não está, quem fica e quem não fica. Houve consensos de que não houve necessidade de falar e houve divergências que foi preciso clarificar. Eu não me lembro de nenhuma discussão sobre neorrealismo. O Carlos de Oliveira é um caso diferente, é um candidato ao título de "O poeta italiano que não tivemos", mas não pertence a essa história. É diferente.

MR— Bom, vamos terminar. Espero que não tenha provocado demasiado com as minhas perguntas. São perguntas legítimas de quem lê um e outro, e fica com dúvidas. 

EL— Eu admirei-me não foi das perguntas que fez, foi das perguntas que não fez! Vou-lhe dizer uma: não me perguntou porque é que eu incluí o Miguel Sousa Tavares...

MR— Achei que era demasiado provocador...

EL— Essa é a pergunta que mais me têm feito.

MR— E a Rosa Lobato Faria também. Já agora, porquê?

EL— Eu procuro nunca ter o preconceito da grande literatura e da pequena literatura, da alta literatura e da baixa literatura. Há, aliás, um ensaio admirável escrito pelo Thomas Mann…Quando ele foi a Estocolmo receber o prémio Nobel, em 1929, ficou sentado ao lado da Selma Lagerloff, que era a escritora sueca que tinha recebido também o prémio Nobel há muitos anos (ela foi logo das primeiras). E disse-lhe que tinha muito gosto em estar ali sentado ao seu lado, porque gostava muito dos seus livros. E ela disse-lhe, com grande humildade: "Ah, sabe, eu não tinha filhos, nunca me casei, tinha sobrinhos, e aquilo eram historietas que eu escrevia para os meus sobrinhos, para os entreter". E o Thomas Mann disse: "Aqui está como uma literatura despretensiosa pode realmente ser uma literatura atraente, uma literatura que desempenha o seu papel." E acrescentou: "A partir daí, eu tive sempre cuidado em nunca separar a chamada alta literatura da baixa literatura, porque isso não existe." O Miguel Sousa Tavares, veja: eu quero iscar leitores que até agora não tenham sido leitores; o Miguel Sousa Tavares é obviamente apelativo, porque ele vendeu não sei quantas edições do Equador. Eu próprio, que sou um leitor treinado, li aquele livro, que achei empolgante. Portanto, se acho que é uma boa isca, porque é que não há de aparecer? 

MR— E porque não o José Rodrigues dos Santos?

EL— Esse menos… Esse, acho que é um Dan Brown à moda portuguesa. Eu gosto imenso de thrillers e leio imensos thrillers, mas dos bons...

MR— Terminamos, então. Obrigado aos dois.

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