Ricardo Reis acordou. Ao seu lado, na cadeira, estava Fernando Pessoa. O chapéu estava na mesa de cabeceira, mas do livro nem sinal, desaparecera.
Levantou-se e foi até à janela. Já era noite cerrada, talvez quase de madrugada. Como era estranho não ver o seu reflexo nas vidraças nem no espelho. Queria olhar-se, verse, talvez para tentar reconhecer a sua imagem, tentar encontrar o seu reflexo, pois já se esquecera de si, e as imagens correm muito rápido para serem lembradas.
Fernando Pessoa dormia profundamente, num sono leve e etéreo, eterna criança do destino, como somos todos afinal. Trazia, como de costume, o seu fato de colete e casaco preto, e a camisa branca.
Já estava habituado, não estranhava a ausência do seu reflexo. Afinal, a sua imagem traduz a sua existência material, a qual tem noção de já não existir, já se desvaneceu, afinal o tempo desvanece tudo.
Mas Ricardo Reis permanecia ainda na incerteza da sua existência, não sabia se era real ou só uma alma dessas de que se ouve falar, e cujas vozes sussurram nesses caminhos a quem passa e julga ter enlouquecido, no entanto conseguem escutar um sinal de quem está perdido e duvida da sua própria existência, capacidade notável, essa. Nunca sentiu realmente, e nunca vivera a realidade concreta dos acontecimentos, sendo apenas um contemplador do espetáculo do mundo, e agora estava preocupado com a sua existência e com a realidade do seu retrato.
Talvez se descesse e fosse à rua, alguém o visse e o cumprimentasse. Talvez Victor estivesse sentado no banco do miradouro, a olhar a sua casa, a analisar a movimentação noturna de luzes e sons. Talvez encontrasse uma das suas vizinhas, vestidas de aventais de trazer por casa, que de manhã cedo limpam sempre o vão das escadas, e que o tratam por senhor doutor, afinal os senhores doutores sabem sempre tudo.
Talvez encontrasse Lídia, vestida com o seu vestido de fim de semana, e com os seus sapatos de verniz. Se a encontrasse ontem, veria em si a graciosidade e felicidade da boa nova do menino. Hoje, veria em Lídia a água do seu rosto de lágrimas, o seu gesto de indeterminação, de impotência, de quem se cinge ao destino. Agora, só nos resta rezar.
Ou talvez encontrasse Marcenda, essa rapariga de cristal, que do seu beijo desapareceria em mil pedaços, se viesse o vento transformá-los-ia em pó, em brisa, em som, numa arcada de violoncelo. É, Marcenda é uma jarra de cristal, uma arcada de violoncelo, um arco completo de início ao fim, um rouxinol que canta no jardim das mais belas árvores, das mais belas flores, o vento do mar.
Se a beijasse, só mais uma vez, talvez também Ricardo Reis se transformasse em vento, e fossem os dois juntos de braço dado, na conquista e na ascensão dos céus de Lisboa. Foi até ao rio. Apanhou a carreira da noite, e lá foi ver Lisboa passar por si.
Chegaste. Toda a cidade está submersa no seu reflexo no rio, qual miragem de cristal. Mas onde estás tu, Ricardo Reis? Não mais nas ruas de Lisboa, no Alto de Santa Catarina, não mais no Hotel Bragança, não mais na Baixa. Nunca estiveste em lado algum. Prevaleceste ao tempo. De que tanto esperas?
A solidão de que tanto procuras está lá longe, no véu onde o mar e o céu de Lisboa se cruzam. Nesse cais, onde nunca foste capaz de embarcar, porque tudo em ti é ilusão. Procuras por ti, em todas as ruas, em todas as casas, em todos os rostos, em todos os silêncios. E, quando te olhas ao espelho lembraste que, afinal, nunca viste o teu reflexo. Perdeste-te, nessa conta incessante dos dias, na incomensurabilidade das palavras, nessa busca por ti em todos os lugares. E foram tantos lugares, e foi tanto o tempo em que procuraste por ti, que o cansaço te consumou o corpo. E, finalmente percebeste. Nada em ti finge, nada em ti é efémero. Tudo em ti sente, tudo em ti é eterno, e todo o teu silêncio não é mais do que as mais belas melodias que o mundo já escutou. Toda a tua indecisão é um caminhar decidido pelas ruas que tantas vezes te viram passar.
Porque queres tudo. Queres o agora, queres a tranquilidade dos dias, queres a solidão das noites, queres cada momento. Mas não queres o compromisso da eternidade, não queres a paixão, não queres o desespero, não queres esse sentir que tanto te assombra. E, por isso, por queres tudo, estás em todos os lugares, por todos os cantos desta cidade, para a eternidade. Perdeste o teu reflexo, mas continua a caminhar, porque um dia, talvez no limiar dos tempos, te vais encontrar. Algures, no céu de Lisboa.
Por agora, deixa-te ficar pelo rio. O dia está quase aí, ainda agora a madrugada começou.
Veja Um Livro por Semana: Um Livro, um Nobel
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Ver também:
Leituras Centenárias: Saramago na Escola
Quantos Saramagos Queres? Testa os teus conhecimentos sobre José Saramago
Um autor por mês: José Saramago