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Tornar-se leitor é como apaixonar-se
Entrevista de Carlos Fiolhais a Alberto Manguel

A entrevista a Alberto Manguel que se segue merece uma breve contextualização. O PNL2027 convidou o letrado cientista Carlos Fiolhais a entrevistar o escritor no início do mês de setembro, imediatamente antes de ser publicada a notícia, com que muito nos congratulamos, da vinda do escritor para Portugal e da instalação da sua biblioteca pessoal no Palacete dos Marqueses de Pombal, em Lisboa.

Tenho na minha biblioteca praticamente todos os seus livros, mais de uma dezena, que estão traduzidos para o português. Um dos últimos que gostei muito de ler é Com Borges, onde nos dá as suas impressões como leitor do argentino Jorge Luis Borges. E tenho nela um canto muito especial para as obras de grandes leitores, como  Borges e o seu compatriota Alberto Manguel, que não só amam os livros, como também escrevem apaixonadamente sobre eles. Li com grande prazer Uma História da Leitura, A Biblioteca à Noite e Embalando a Minha Biblioteca, para referir apenas três das suas obras. Recomendo-as a todos os que gostam de livros. Desfrutar dos livros é desfrutar da humanidade, porque um bom livro é sempre um “compêndio” de humanidade.

A propósito da recentemente anunciada instalação da biblioteca do Manguel em Lisboa, entrevistei-o por email, por incumbência do Plano Nacional de Leitura.

Carlos Fiolhais (CF)— Soube há dias que vai “embalar a sua biblioteca” para Lisboa. Porque escolheu Lisboa? Como será o seu projecto relativo à história da leitura? Vem para ficar? Ou pode admitir a ideia de ficar longe da sua biblioteca por muito tempo?

Alberto Manguel (AM)— Foi a minha editora portuguesa, Bárbara Bulhosa, da Tinta da China, que deu início ao projecto. Ela sabia do destino dos meus livros que estavam encaixotados desde 2015, porque tinha publicado a minha elegia, Embalando a minha biblioteca. A Bárbara falou com o presidente da Câmara de Lisboa, com a proposta de instalar a minha biblioteca nessa cidade. Fernando Medina é um político jovem, que equilibra sabiamente as necessidades práticas dos seus cidadãos com um grande interesse pela cultura. Pretende fazer de Lisboa um grande centro cultural, uma tarefa já iniciada pelo seu antecessor, António Costa, que entregou a bela Casa dos Bicos a Pilar del Río, para aí instalar a Fundação Saramago. Medina compreendeu imediatamente a importância internacional de um centro para o estudo da história da leitura (que é o meu tema). Lisboa tem magníficas bibliotecas (como a de Coimbra), várias colecções de língua portuguesa e uma rede muito eficiente de bibliotecas públicas. Mas não tem uma biblioteca multilíngue como a minha. Medina propôs um palácio extraordinário para abrigar a minha biblioteca e o dito centro. Haverá um orçamento para renovar o prédio - não há muito trabalho a fazer, praticamente pintar e construir as estantes. E também um orçamento para novas aquisições, o que é essencial para que uma biblioteca continue viva. Ele também contratará bibliotecários e designar-me-á director do Centro. Sinto que houve um milagre: recuperarei o meu paraíso (no sentido da biblioteca borgesiana) e a sua ressurreição ocorrerá no país dos ancestrais de Borges. Seria impossível uma coincidência mais feliz. E sim, irei para ficar. Chegarei em breve com essa esperança.

CF— Tive a honra de ser director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que abriga a Biblioteca Joanina, uma das mais belas do mundo. Mas ainda não tive a honra de o guiar nessa casa, mostrando-lhe alguns dos seus tesouros: uma Bíblia judaica que a Inquisição não queimou, uma primeira edição de Os Lusíadas, os Roteiros da Índia de D. João de Castro, etc. Já visitou a Biblioteca Joanina? E a de Mafra? Poderá  Portugal ser um destino privilegiado para os amantes de livros?

AM— Já visitei a esplêndida biblioteca da Universidade de Coimbra, mas ainda não a de Mafra, que conto visitar um dia. A minha experiência de leitor diz-me que os livros são muito pacientes e nos esperam o tempo que for preciso. Portugal já é “um destino privilegiado para os amantes de livros”, claro. Muitas das melhores bibliotecas do mundo estão aí! E livrarias também. Percebi isso na primeira vez que visitei o país, quando, numa livraria lisboeta me deparei com vários números do Master Humphrey's Clock, onde Dickens começou a publicar o que viriam a ser partes do seu magnífico romance The Old Curiosity Shop. Agora vou devolver a Lisboa um presente que me deu há largos anos

CF— No seu livro sobre Borges, um dos aspectos que mais me fascinou foi o reduzido tamanho da biblioteca pessoal do autor da Biblioteca de Babel. Os grandes livros estavam na sua cabeça. Tem, como Borges, alguns livros na mente?

AM— Sim, claro. Desde que tive que embalar a minha biblioteca em 2005, não tenho à mão os livros que desejava ter. Sinto o que sentem os amputados: uma mão perdida que me permite tirar os volumes fantasmas da estante desaparecida de uma biblioteca inexistente. Então, a pequena bibliotecária que está na minha mente tenta-me ajudar. Às vezes, ela encontra o livro de que estou à procura, mas outras vezes tem de substituir esse volume por outro. É uma bibliotecária muito caprichosa e diligente. Gosto muito dela.

CF— Surpreendeu-me que Borges não tivesse consigo os seus próprios livros, o que revela um distanciamento que poucos autores possuem em relação à sua obra. Escrever será um acto de narcisismo e publicar não será uma feira de vaidades?

AM— Borges dizia que a modéstia é a pior forma de orgulho. Mas acho que ele não tinha os livros que escreveu em casa, por duas razões: por discrição certamente, mas também porque os tinha gravados na sua colossal memória e, portanto, não precisava de os ter à mão. Ele lembrava-se de tudo o que tinha escrito, palavra por palavra, como um Funes inteligente.

CF— Borges tinha um cânone pessoal diferente, por exemplo, do de Harold Bloom, embora ambos com Shakespeare à cabeça. Também tem um cânone pessoal? Quem está lá?

AM— O cânone de Borges era acima de tudo pela negativa. Era admirável aquilo de que ele não gostava: Zola, Balzac, Lorca, Galdós, Austen, etc. Bloom parece-me um exagerado: sempre tivemos cânones, e eles sempre mudaram consoante os leitores mudaram. Por que razão impor um só? Os cânones são variáveis. Quem hoje coloca Lactâncio, Oliver Goldsmith ou Anatole France no cânone, como se fazia há tempos? O meu cânone muda com frequência, havendo alguns amores constantes: Carroll, S. João da Cruz, Nuwas, Stevenson, Kenko, Chesterton, Dante, Cervantes e Borges,  claro.

CF— Numa peça de teatro, Une Nuit à la Bibliothèque, de Jean-Christophe Bailly, que foi representada na Biblioteca da Universidade de Coimbra, os livros saem, no silêncio da noite, das estantes e conversam entre eles. Como imagina essas conversas entre os livros da sua biblioteca?

AM— Já assisti muitas vezes a essas conversas nocturnas na minha biblioteca. Por vezes consegui captar fragmentos de discussões, disputas, amizades entre Eça de Queiroz e Henry James, entre Sophia de Mello Breyner e Alejandra Pizarnik, entre Santo Agostinho e Maimónides. Essas conversas enriqueceram muito as minhas leituras.

CF— Esta pergunta pode soar como déjà-vu: Como imagina o futuro dos livros? Como podemos defender os livros em papel?

AM— Não sei. A única coisa que posso dizer é que, se nós, humanos, sobrevivermos a essas catástrofes pelas quais somos responsáveis (e não há nada menos certo), os livros sobreviverão porque passaram a fazer parte de nosso ADN como espécie leitora. Embora existam sociedades orais nas quais o "livro" é a memória dos mais velhos, as sociedades escritas não podem existir sem livros, em qualquer meio: argila, papel ou ecrã. E haverá novas tecnologias, porque sempre houve. Alguns sobreviverão tal como estão, como o livro impresso; outros mudarão como a tábua de argila e o rolo de papiro. O códice sobreviveu tal como está, o rolo de papiro metamorfoseou-se no texto virtual que se desenrola no ecrã.

CF— O americano Robert Darnton tem defendido um programa de digitalização alternativo ao do Google. Como vê este projecto?  Como conciliar, na esfera digital, o interesse público com o interesse privado?

AM— Eu não uso tecnologia electrónica para ler, mas é apenas um gosto pessoal. Quando dirigi a Biblioteca Nacional da Argentina, insisti em que digitalizássemos o maior número possível de obras, para permitir o acesso aos livros a leitores que não pudessem ir fisicamente à biblioteca. A digitalização ajuda também (em certa medida) a preservar documentos frágeis ou delicados, como, ilustre bibliotecário que é, bem sabe.

CF— Escreveu: "As bibliotecas, na sua essência, questionam a autoridade dos que estão no poder." Considera que, no mundo de hoje, os livros ainda são um contrapoder? Mas, em vários lugares, existe censura. Como garantir a liberdade de escrever e publicar?

AM— Há uma diferença fundamental entre garantir o acesso aos livros e tornar esse acesso possível. Se não tem de comer ou onde dormir, não adianta saber que o Estado garante o acesso a uma biblioteca. O Centro de Estudos da História da Leitura que abriremos em Lisboa tentará ser um pequeno contrapeso ao poder crescente da ambição política e económica da sociedade de consumo, cujo propósito óbvio é converter-nos a todos em escravos que perderam a confiança na sua própria inteligência. Talvez possa ser, até certo ponto, um local de educação cívica; afinal, um cidadão inteligente é um cidadão leitor, ciente dos seus direitos e responsabilidades. O Centro estará aberto ao público, e convidaremos investigadores de todo o mundo para ali trabalhar. Haverá seminários, conferências e exposições. É um pouco o que tentei fazer quando dirigi a Biblioteca Nacional: torná-la um lugar de encontro internacional e de diálogo. Penso também em propor programas sociais como os das Salas de Leitura do México, através dos quais se fomente o trabalho de grupos de leitores e bibliotecas populares.

CF—Também escreveu: “O amor às bibliotecas, como todos os amores, tem de ser aprendido”. Como se pode desenvolver o gosto pela leitura? O que podem, em particular, os professores fazer para que os seus alunos se entusiasmem por ela?

AM— Essa é uma pergunta eterna e não tem resposta. Comunicar a alguém a paixão pela leitura, ensinar a alguém como ser leitor, é uma proposta impossível porque cada indivíduo tem que trilhar esse caminho sozinho. Tenho sempre dito que tornar-se leitor é como apaixonar-se: isso não se ensina, só se aprende - e ninguém sabe como. O que o leitor pode fazer é exemplificar a sua paixão, falar sobre o modo como a leitura o transformou, que epifanias ela lhe ofereceu, que ensinamentos lhe deu, que amizades lhe proporcionou. O que se pode assegurar a um futuro leitor é a promessa de que em alguma biblioteca, nalguma estante, haverá um livro escrito para ele ou para ela, ou pelo menos uma página ou um parágrafo, no qual esse leitor encontrará a sua identidade mais secreta, os seus desejos mais elevados e os seus medos mais profundos. Esse espelho mágico é o que a condição de leitor nos oferece e continuará a oferecer até que o último ser humano dê, resignado, o seu último suspiro.

CF— Concordo consigo, ler é viver!

Nota: Carlos Fiolhais não segue o Acordo Ortográfico de 1990.

Chegado o momento em que se concretizou a doação da biblioteca de Manguel a Lisboa, com a presença do grande bibliófilo na cidade como Diretor do Centro de Estudos da História da Leitura (CEHL), dirigimos-lhe ainda, no contexto da nova situação, uma outra pergunta, no sentido de atualizarmos a entrevista feita no início do mês de setembro e testemunharmos o interesse e a disponibilidade do PNL2027 para colaborar com o escritor e com o Centro.

A propósito do contributo da sua vinda para Portugal e das suas ideias para convocar e animar os leitores portugueses, Manguel respondeu que não existem fórmulas eficazes para atrair ou criar leitores. O melhor que se pode fazer é anunciar a existência do Centro e fornecer eventos que possam ser interessantes, mesmo para aqueles que normalmente não visitam bibliotecas, como leituras dramáticas, entrevistas ao vivo, exposições, seminários em torno da história da leitura e do livro, esperando que atraiam o público, jovens e idosos, académicos e amadores. Assumindo o PNL2027 boa parte das responsabilidades por uma política pública de leitura em Portugal, Manguel espera trabalhar em conjunto com ele, bem como com outras instituições portuguesas, sempre em prol do livro, da leitura e da escrita. 

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